C.R.A.Z.Y. - JEAN-MARC VALÉE

O cinema é sempre a última das artes. Tudo o que acontece antes em pintura, música ou literatura, aporta uma ou duas décadas mais tarde nas telas. Só a partir de 2000 é que a geração que cresceu/nasceu no ambiente glitter/punk dos anos 70 começa a dar suas cartas. Esse tipo de filme Bowieano, que tem como representantes Todd Haynes, Stephan Elliot e Alexander Payne, traz agora este deslumbrante, obrigatório, raro, magnífico : CRAZY.
Valée dirigiu em 2010 o ótimo YOUNG VICTORIA, e pouco antes nos deu este CRAZY, filme muito pessoal e uma jóia rara. Vamos ao roteiro.
Acompanhamos a história de uma família canadense. Católicos ( o filme é cheio de belas e engraçadas cenas na igreja ) e francófila. Essa "saga" começa em 1960, com o nascimento do quarto filho homem. O pai, fã de Aznavour e de Patsy Cline, e os irmãos, um intelectual, um rebelde e outro que é esportista. E nosso herói, Zac, que talvez seja gay. Que talvez seja um tipo de santo. Ou ainda apenas um cara tentando existir. Assistimos seus aniversários ( ele nasce em 25 de dezembro ), seu crescimento, sua camaradagem com o pai. A infância dele é comédia, mas o filme se torna drama na segunda etapa. Em belo corte, eis Zac adolescente, começando a descrer da igreja ( há uma cena belíssima ao som de Sympathy for the devil na missa ) descobrindo maconha e com o quarto, lógico, cheio de fotos de David Bowie. Fico pensando o que David deve pensar dessa dúzia de tributos que o cinema lhe tem prestado neste século XXI. Ziggy era mesmo um cara do futuro...
Zac começa a ter dúvidas sexuais e a barra se torna muito pesada. Brigas com o pai, com os irmãos, isolamento na escola, rompimento com a igreja. Mas, aí vem a habilidade do filme, ele jamais pesa, jamais se torna dramalhão, o filme prefere brilhar, ser imparcial, mas jamais frio. Ele flui. Nunca tenta ser arte, opta por contar sua história. E atenção : apesar da belíssima cena com a música Space Oddity, não é nunca um filme de rock.
Na terceira parte Zac vira punk e nesse começo de anos 80 a coisa pesa ( e os 80 foram muuuuuito pesados ). O filme, então, se torna magistral. Mergulha no drama sem medo e toca profundamente qualquer um que se recorde do que é ser adolescente. Confusão, violência e decepções. Confesso que desde PEIXE GRANDE um filme não me derrubava tão profundamente. Tudo está alí. Toda a merda de se escolher tudo de ruim. Todas as opções de Zac são erradas. Mas não só dele : pai, irmãos, amigos, todos erram sem parar. E nenhum tem qualquer culpa. Menos a mãe. E essa é uma das coisas mais belas do filme. A mãe, sem ser modelo de heroína, é sim o símbolo dessa coisa dolorosa chamada maternidade.
Mas é, e voce só percebe isso ao final, o pai o grande personagem desta obra tão bonita. É ele quem nos derruba. Percebemos a solidão patética, a bobice sem jeito desse ser que sempre se obriga a ser modelo e nada entende ou consegue salvar. Os minutos finais, que luto para não revelar, são hinos à reconciliação e a paternidade. É um filme vasto.
Coisa idiota se tornou o cinema. Se fala tanto ( às vezes merecidamente ) em Clint, Kar Wai, Almodovar, Guerra ao Terror, Van Sant, Coen e etc. E filmes como este passam em branco. Cada vez mais se destaca apenas o que já nasce eleito para ser destaque. O que já vem com griffe. Morreu o boca à boca, e dessa forma os azarões não vingam. Este filme é infinitamente superior a qualquer concorrente a Oscar deste ano ou do ano passado. Quem o viu ?
Jean-Marc Valée tem talento imenso. Espero demorar para ser corrompido por alguma adaptação quadrinhesca. CRAZY dignifica a arte.