A primeira sentença já faz com que saibamos estar diante de algo muito especial. Após as primeiras vinte páginas estamos viciados e logo sentimos a presença de um tipo de gênio ou duende em cada palavra escrita. Tolstoi é vasto como Shakespeare. Seu dom é o de abarcar tudo. Ao contrário de Dostoievski, ele não se limita apenas aos loucos ou desajustados. Diferente de Tchekov, ele é potente, forte, corajoso, heróico.
Anna é o personagem central mas não é o maior. Vronski é tão grande como ela. O que o livro nos dá é inestimável. A idéia central é : o amor romântico é valorizado demais. Erramos ao aceitar o pensamento de que tudo se desculpa pelo amor. Pode-se matar, e se pode morrer. Se for por amor foi por bela causa. Pois a esse amor, no fundo egoista, Tolstoi opõe o amor de Lievin e Kitty. E em Lievin, Tolstoi cria o mais nobre personagem de toda literatura ( incluindo Quixote e Hamlet ). Lievin ama Kitty com fidelidade e devoção, Kitty aprende a admirar Lievin e dessa admiração brota o amor. Mas o amor deles é um amor que engloba tudo, eles estão interessados na vida, não vêem toda a vida nos olhos do outro. Kitty vive ocupada com seu trabalho na fazenda e Lievin tem ideais. Lievin sonha com a igualdade entre camponeses e vive em crise de espírito e de carne. O livro contrasta todo o tempo o mundo futil de Anna com o mundo vital de Lievin. Lievin entende Anna e poderia a amar. Mas Anna está cega pelo que imagina ser Vronski e Vronski ama Anna. Eles se bastam... mas a vida não é assim.
As páginas da crise espiritual de Lievin e sua cura pela observação da natureza, são a coisa mais maravilhosa que li em toda a vida. Ao ler aquilo voce sente todo o sufoco e aturdimento de Lievin, mas, milagrosamente, a ressureição dele é a sua. Quando ele sente finalmente a paz e enxerga o sentido de tudo, voce, maravilhado, sente exatamente o mesmo. A sensação é de sol brilhando, de anjos descendo, de mar descoberto. Vemos a vida pela primeira vez. Mas há bem mais.
As fofocas e as suntuosas festas, a vaidade vazia, a crueldade do marido traído ( e que nunca se torna um vilão ) o final de Anna. Estamos longe do romance melado, estamos longe do realismo. Tolstoi escreve num estilo só dele, é como se nos pegasse pela mão e fosse nos mostrando o mundo. "Veja leitor, eis uma mulher bela ! Percebe onde reside sua fraquesa ? Veja leitor, isto é a nobreza e isto é a vilania ! " Tolstoi nos faz mais adultos, mais vivos, ele nos dá o mundo.
Anna Karenina nos surpreende todo o tempo. Quando pensamos ter captado quem ela é, algo acontece e duvidamos de sua verdade. O autor cria personagens críveis, podemos vê-los, podemos ouvir suas vozes, mas nunca conseguimos capturá-los.
Leon Tolstoi foi parte da nobreza russa, foi soldado, foi literato. Enfrentou forte crise espiritual e largou tudo. Foi viver numa comunidade agrícola ( em suas terras ) onde fundou uma religião e um tipo de proto-socialismo. Todos os seus anos de velhice são anos de pregação utópica. Tolstoi morreu amargurado pela realidade egoista dos homens, recebendo romarias de escritores que o viam como um deus. Anna Karenina nos dá tudo isso.
O que faz de um livro um bom livro é sua capacidade de nos abstrair da realidade.
O que faz de um livro um grande livro é quando o autor cria uma nova realidade e nós mergulhamos nela.
O que faz de um livro coisa de gênio é o dom de transformar o leitor e o mundo durante sua leitura e após sua leitura. Após Anna Karenina, deixamos de ser os mesmos e o mundo deixa de ser como era. Tolstoi cria um mundo de tinta e papel. E mais incrível, modifica um universo de pedra, água e fogo, usando apenas tinta e papel. Talvez Deus exista.