TÉDIO E FUTILIDADES

Primeiro a futilidade. Adoro listas. Como Nick Hornby, adoro fazer listas. Livros favoritos, livros mais chatos, amores inesquecíveis, músicas que mais me fizeram chorar. O TIMES fez a sua lista. Os cem melhores filmes desta década. Pela lista desse jornal, se voce passou a década sem ir ao cinema não perdeu nada. Qualquer um sabe que a qualidade nas telas já foi bem melhor. Esta década é a pior da história dos filmes. Mas o Times não precisava esculhambar ! A lista mostra que mais que os filmes, a crítica está no fundo do abismo.
Você pode fazer uma lista alternativa, com ironia, contra as expectativas. Uma lista anti-intelectual. Ou ir pelo caminho do bom senso. A lista do Times é apenas tosca.
Para eles, CACHÊ de Michael Haneke é o filme da década. Forte ele é, mas o melhor ? Melhor em que ? O segundo é O ULTIMATO BOURNE de Greengrass... aí a coisa pega. Talvez seja uma bela aventura, meia fru-fru, mas se este é o segundo maior filme de uma década inteira... bem, então a década foi dispensável.
A coisa melhora com o terceiro : ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ, dos Coen. Adoro e acho que é um dos cinco melhores em qualquer lista. Mas O HOMEM URSO de Werner Herzog como quarto ! É um grande filme, mas é exagero colocá-lo aqui. No resto dos dez primeiros vêm TEAM AMERICA de Trey Parker, o filme de Danny Boyle em sexto, O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA, CASSINO ROYALE do veterano Martin Campbell em oitavo, A RAINHA do grande Stephen Frears em nono e em décimo HUNGER de um diretor que se chama Steve McQueen. BORAT é o décimo primeiro...
Adoro os Coen e gosto muito de Herzog e Stephen Frears. Mas de 2000 pra cá não houve nada de melhor ? Lí toda a lista dos 100. Tem Cidade de Deus, mas tem também o medíocre Irreversível !!!! Tem Os Anéis, tem Lynch bem colocado e tem até alguns desenhos ( o melhor classificado é PROCURANDO NEMO ). Mas dá pra levar a sério uma lista que ignora TUDO o que Tim Burton e Clint Eastwood fizeram nesta década ? Que coloca Almodovar lá atrás e não cita KILL BILL ( nem em centésimo.... ) Qual é ? O filme com que Scorsese levou o Oscar é pior que a bobagem de Danny Boyle ?
Falando agora de algo mais importante.
Lí em algum lugar isto : Que o ser-humano só é feliz quando está cem por cento em esforço. Como um motor : você tem uma potência e só se realiza quando esse motor solta toda essa força. Pois bem. Os deprimidos são aqueles que têm um potencial jamais utilizado. Tipo de falcão preso num mundo de galinheiros. Neste mundo, onde tudo é facilitado e já vem pronto, o ser-humano estaria condenado ao tédio e a deprê. Pois a vida, só pode ser plenamente vivida, na dificuldade, na luta, no esforço. Quem luta vive. Livra-se da sensação, terrível, de vida jogada fora, de energia desperdiçada, de viver por nada.
Em um mundo onde se lutava por tudo ( pela comida, pela liberdade, pelo direito de fazer sexo, pelo voto, pela vida enfim ) a deprê era inviável, o tédio, um luxo. Ficava-se triste, morria-se até de tristeza ou de melancolia, mas não se definhava no desinteresse por tudo, no fastio que nunca passa, enjôo de viver. Fazer sexo era uma festa de liberdade, trabalhar era questão de honra. Hoje tentamos encontrar essa luta no "amor". Procuramos o amor como a grande luta, o campo onde podemos jogar tudo, deixar irromper toda energia. Ou então nos matamos num esporte desumano ou em drogas suavizantes. ( E talvez as pessoas se viciem para depois ter algo pelo que lutar : a cura. )
Não é a toa que os doentes desenganados sentem-se ao mesmo tempo aterrados e muito vivos. É uma briga verdadeira que ainda podemos ter, a briga contra a doença. Filmes com velhinhos perdendo a memória ou com jovens aidéticos provam isso. Nosso herói de hoje é o doente que sobrevive.
O meu e o seu potencial, adormecido, espera ansioso, com medo e ao mesmo tempo com ansiosa alegria, pela batalha que nunca chega. Que batalha ? Que luta ? Ir pro Big Brother ? No Limite ? Ou um tumor escondido ? Onde podemos lutar, usar toda nossa inteligência, fé, força muscular, habilidade manual, espírito de cooperação, raiva, desejo ? Onde ?
Num mundo sem revoluções, sem tabús para romper, sem ideologias para alcançar, sem inimigos reconhecíveis, sem tiranos e cheio de "tudo pode", brigar pelo que ?
Então vem os rachas no asfalto, tiros na policia, tráfico na rua, viagens sem destino. É a luta que resta, é a promessa de vida vivida. Lutas pelo mal, já que as lutas pelo bem foram decididas em outra geração.
Triste ironia. Quanto melhor nosso corpo, quanto mais protegido, cuidado, acalmado, paparicado; mais nossa alma se aflige, grita, se debate, se exaspera e por fim se entrega, dócil, podada e totalmente inutilizada. A alma/potencia não se desenvolve no conforto absoluto, na ausência de fome, de dor ou do "dragão a ser vencido".
Como disse em outro texto, Goethe temia que o mundo se tornasse um grande hospital. Que no futuro todos tivessem alguma doença para tratar. Eu completo isso dizendo : estamos sim num grande hospital. Um misto de clínica cardíaca com spa. Mas esse hospital não tem camas. Ele tem berços.