FLANEUR, SEMPRE...

Andar flanando. Deixar que as ruas te levem para onde elas desejarem. Seu fio de pensamento se faz circular e unido com a rua, trafega com liberdade ao vento que voa pelas esquinas. Para o flaneur a poesia existe, mesmo que seja poesia ruim.
Desço na rua Butantã, e fico feito um tonto na calçada, sem nenhuma idéia de para onde seguir. Mas lembro do cine Goiás, e resolvo tirar uma foto do lugar onde ele ficava. Cruzo a rua e percebo que não faço mais a menor idéia de onde ele ficava. Bom... fotografo a fachada da antiga Mesbla. Chego a igreja e entro na rua que me levava ao Objetivo. A luz ainda é a mesma daqueles dias em que matava aula nos fliperamas, com Mauro, Tinho e Dió. Isso foi ontem, essas ruas estão congeladas ou talvez se movam em círculo. Até hoje eu penso que jogar qualquer coisa sem ter adversário e platéia é de uma idiotice suprema.
Bom... adoro escrever "Bom"... como franceses, lá eles vivem com esse "Bom".... é um tipo de "Pois é..."
Viro à esquerda, para ver a bandeira britânica tremular. Depois viro à direita, só para passar em frente à uma paineira que acho bonita. Resolvo ver o Bresson outra vez... estou francês hoje.
Eis. Fotos. Hoje me ligo na geometria das imagens. No equilibrio. Parecem humanos aqueles modelos. São fotos cheias de narração. Há uma alma nelas. Melodia. As pessoas ainda conseguem ver ? Está passando um documentário sobre o mestre. Percebo que esquecí de tirar meus óculos escuros. Na escuridão, só eu e uma criança assistimos a Henri ser entrevistado. Ele fala de flanar. Coincidência número um da tarde. Várias fotos passam na tela. Vejo-as e estou de pé. Porquê eu choro ?
Pessoas jogam xadrez na rua. A tarde é tão linda que dá vontade de viver para sempre.
Rua Pedroso de Moraes. Um filme novo de Michael Powell chegou na 2001. Compro. No sebo de livros nada há que valha a pena. Fotografo uma menina que acabou de sair da natação. Ela tem algo de atemporal. Subo pela Inácio. Desço por ruas que não sei o nome. Tenho uma teoria de que a criatividade está ligada a dentes ruins. Mendigo adormecido com cachorro ao lado. Fotografar os dois seria um pecado.
Faria Lima. Esta rua está morta. Nada há nela que valha a pena. O Papai-Noel já está na calçada ! Virou um escravo, agora trabalha um mês a mais !
No Iguatemi um menino diz ao pai : -" O Bruno não acredita no Santa, pai ! " Sem comentários... Santa !!!!!!!!
Itaim-Bibi. Era um bairro de meninas bonitas e de sobrados com bicicletas. Surf shops e lanchonetes. Agora é um caos de comércio pseudo-chic e trânsito barulhento. Entro num boteco. Um boteco real. Não é mais um boteco virtual, desses que são todos idênticos. Até as pessoas são sempre as mesmas. Este não : todos se conhecem, os petiscos são baratos e bons, o dono fala com você. Cerveja gelada de doer a cabeça. Inesquecível. Namorei lá, naquela mesa, anos atrás.
Pedro de Toledo. Bandeira Paulista. Adoro os nomes das ruas do Itaim. Fábrica da Kopenhaguen...onde ? Cinema. Espero amiga. Tarantino. Café, ela diz :-"Para o Zen, a vida é um círculo."
Sim, mas vivemos numa reta. Porquê ? Quem sabe... Ela quer paz espiritual. Mas odeia submeter-se a qualquer tipo de rotina. A armadilha da ansiedade. É noite.
Me conta de uma nova teoria : somos o que nossos antepassados fizeram. A paz está em seguir o destino inscrito no legado familiar. Bom...
Flanar. Luzes noturnas. Estou só. Demolição na Clodomiro. Belos escombros. Alguém os assiste ? Sou como um anjo de "Asas do Desejo", mas não assisto pessoas, assisto as coisas. Elas me falam. Falam sua língua de pedra e de madeira. Foi Baudelaire quem criou o flaneur. Bom Charles.
Quero ver o rio com luzes. A brisa bate e a noite é quente. Saul Bellow é o cara. Serge Gainsbourg é o cara. Eu quero uma Jane Birkin.
" O pai de George era uma pessoa simples e modesta. Tudo que ele queria era viver para sempre... Myron declarava que devia sua longevidade ao calor e ao vapor, ao pão preto, à cebola crua, ao bourbon, ao scotch, ao arenque, à linguiça, às cartas, ao bilhar, aos cavalos e às mulheres. Goethe temia que o mundo moderno se tornasse um grande hospital. Todos os cidadãos doentes. Segundo Romains, quando a sociedade falha em estabelecer contatos entre o sentimento de vazio e o pânico para o qual o homem é predisposto, outros agentes avançam para nos colocar em contato com a terapia. O que isso significa é que os seres humanos são loucos. A última instituição que controlou essa doideira foi a igreja. Agora são os médicos." Cito Saul Bellow. Bom pra cacete !!!!
"O geminiano é um moinho mental de sensações onde a alma é despedaçada e pulverizada " isto é Bellow também. Sou geminiano. Atravessei a ponte sobre o rio Pinheiros. Estou na Francisco Morato. Esta avenida sou eu. Feia e cheia de coisinhas bacanas. Entro nas ruas do Butantã. Este bairro foi criado para os professores e funcionários da USP, nos anos 30. Em cada casa, com seu jardim e suas janelas de vidro grosso, respiro professores de literatura e de física. Passo na minha padaria favorita. Panettone quente. Nada pode ser mais feliz.
Eu amo as fotos de Bresson, eu amo Tarantino, amo Saul Bellow. Eu amo o rio Pinheiros, amo o Butantã e o Itaim. Amo todo sebo e todo DVD de Michael Powell. Amo as amigas que ainda procuram entender a vida, amo ser geminiano, amo a noite quente cheia de bichos voando na luz. Amo o panettone e a cerveja que faz doer. Mas eu flano, e sou o moinho e este mundo é um hospital.
Charlie me espera em casa. Lambe minha mão e quer fazer hoje exatamente o que fez ontem. Ir à rua, voltar e dormir. Charlie é o círculo. Filosofia canina. Bom...
Sinto saudades de quando UM MAÇO DE GITANES CUSTAVA O PREÇO DE UM MARLBORO!!!!!!!!!