MURILO MENDES E CAXINGUI E ANJOS E SONO

A idade do Serrote, de Murilo Mendes. Não vou falar do livro mas só vou falar do livro. Os anjos de Charles Citrine. ( Citrine é o cara. Um herói, um herói ). Diz :
O mundo é mistério. O encantamento acontece todo o tempo. O que podíamos ver na infância continua no mesmo lugar e do mesmo jeito. Não percebemos porque somos treinados a não ver. Portanto não tenha saudades do mundo como foi. Toda magia será sempre viva, pois ela NÃO LIGA PRA NOSSA RAZÃO. O que vemos hoje, adultos em linhas retas, é ínfimo perante aquilo que existe. Educados para a cegueira.
Mais.
Anjos não existem. Eu os uso como símbolos para aquilo que não tem nome. E símbolos é tudo que me importa. Citrine diz que neste mundo, com tanto barulho, bips, crás, zuuuum e tanta informação acumulada na cabeça ( números de telefone, de cartões, convites, leis, deveres, notícias distantes ), anjos, que podiam ler nossa mente enquanto dormíamos, não conseguem mais se comunicar conosco. É uma bela imagem : um anjo pairando sobre nosso quarto e dialogando com a criança que fomos : sol, vai chover ? , gosto de Roseli, sapos, porão, medo de cobra... São pensamentos de cristal, legíveis, nitidos, de água que corre. O anjo lê.
A insônia é a vergonha de ser lido. Que belo pensamento de Charles Citrine !
A IDADE DO SERROTE é para ser lido por anjos.
O CAXINGUI ERA UM SAPO. Era preciso tomar cuidado para não pisar neles. E toda noite era uma sinfonia de rãs cantando. Mas de manhã eu acreditava que todos morriam para ressuscitar às 18 horas. Porque detrás das nuvens estava Deus. E o raio, que caía lá pros lados de Santo Amaro ( tudo era pros lados de Santo Amaro, tudo de ruim. Tudo de bom era aqui. ) o raio era um bandido que Deus pegava pelos cabelos, jogava ao chão da nuvem, e a queda do bandido produzia a faísca que era o raio. Era assim. Como por detrás de cada parede de casa havia um quarto secreto e um dia eu derrubaria essas paredes e veria esse segredo.
No Morumbi abundavam cupinzeiros e onde existia cupinzeiro existia uma cobra-cega. Abundavam trabalhos de macumba também, e se voce pisasse na macumba seu pé caía. Assim como olhar pra cobra-cega te deixaria cego. As nuvens eram habitadas e no porão de casa morava um rato que falava ( mas eu nunca o escutei ).
O bairro era cheio de água. Quando fazia calor voce ficava surdo de tanta cigarra cantando. O som do Caxingui era o som de cigarras de dia e dos sapos de noite. Um gambá apareceu num buraco e uma preguiça numa árvore. Apareceu sim, assim como uma menina foi atropelada pelo caminhão do lixo.
Cada quarteirão tinha próximo seu córrego e havia tanta mamona que daria para em nossas guerras destruir o mundo. Pinheiros era longe...... ao lado do rio corria o trem, fazia neblina e umas casinhas ficavam onde surgiria a marginal. Nos córregos meu coração batia forte ao ver peixinhos quase transparentes atravessados pelo sol que cruzava a água. EM CADA METRO UMA VIDA VIVIA.
Coloquei espelho retrovisor na bicicleta ( que não era bike, era magrela ). Paralamas também e buzina. Descia sem freio pela terra. Na granja matavam galinhas, e os galos cantavam enquanto eu andava para a escola. Às sombras dos eucaliptos. Cheiro de terra, de folha de eucalipto e de galinha viva. Minha escola cheirava a eucalipto. O dentista elogiava meus dentes e eu amava uma lourinha que se chamava Dona Baratinha, esse tinha sido o papel dela numa peça que não fiz. Dona Baratinha passava e eu me sentia Charlie Brown.
O Japão havia invadido o bairro e eu andava com eles. Comentávamos Nationalo Kido. De tarde dava pra ouvir todas as casas ao mesmo tempo sintonizadas no SPEED RACER. Mas aos domingos era "SILVIO SANTOS VEM AÍ..." Eu bebia Cerejinha.
Mas eu pensava que só eu assistia OS MONKEES. E eu amava os Monkees e pensava ser pecado gostar mais de David Jones que de meu pai. Mas eu gostava e decorava as músicas e obrigava meu irmão e minha prima a me ouvir cantar. TAKE THE LAST TRAIN TO CLARKSVILLE. E minha professora usava uma saia muito curta e eu sentia um calor na barriga quando a via de pernas cruzadas.
Quando chovia a água corria pelas calhas de lata e fazia barulho de sono. Da janela de meu quarto eu via vários quintais com cães e árvores e hortas e galinhas e patos. Eu cavava a terra úmida e os patos comiam as minhocas. Na janela havia uma aranha que eu assistia. E na cama, toda noite, um anjo me assistia. Eu o vi uma vez. E cobri minha cabeça, com medo. Não queria que ele me visse.
No terrão da escola os moleques brigavam e se faziam festas juninas. Eu recebia medalhas douradas e desenhava guitarras dos Monkees nas carteiras. O tempo era longo e a vida era sem conta. Minhas primas cheiravam a meia branca, sandálias novas e cabelo escovado. Mamãe cantava enquanto lavava a louça e meu pai trouxe uma tartaruga numa caixa de sapatos.
Citrine diz : todo esse encanto está intacto. Nossa cabeça é que se alienou.
O livro de MURILO MENDES é a confirmação e o testemunho disso.
Minha prima sentava-se no chão, abria seus livros e estudava. Os pássaros cantavam e eu me sentava ao lado dela, abria meus cadernos e fingia estudar. Ao lado dela. E na casa onde eu ia ler livros de religião, havia no jardim um jacaré com olhos de vidro. Ele era vivo mas não se mexia. Ele era vivo. E a dona da casa permitia que encostássemos a mão nele se aprendêssemos a lição. Jamais tive tanta coragem.