Os poetas sentem antes aquilo que será sentimento comum no futuro. Conheço um cara que aos 16, nos anos desbundados ( 1979 ) teve uma crise, rara na época, de " não sentido". Nada lhe interessava e a vida lhe parecia já vivida. Sentia-se velho, no fim da picada. Esse mesmo ser, aos 23, em plenos efervescentes anos 80, adquiriu uma sindrome de pânico, num tempo em que ela era confundida com frescura-aguda. Ele não é um poeta, mas tem um espírito meio poético, meio vago, meio meio... Imagine então o que não deve captar a antena de um verdadeiro poeta !
Conheço hoje um garoto de 19 anos. Ele tem dinheiro, mora num belo lugar. Está sempre rindo e fala com qualquer um. Cheio de amigas, vai pegar onda, e está na faculdade que escolheu. Ele vive atualmente uma crise e toma anti-deprê. Diz que nada mais o interessa na vida. Não, não vou falar da falência de nosso tempo. Este mundo não nos oferece nada mais que pareça verdadeiro/ belo e eterno. Vivemos o falso/ desequilibrado e fugaz. Bom...
Eliot foi maior que Wallace Stevens. E ser maior que Stevens é ser quase um deus. Quatro Quartetos se divide em quatro poemas. Eis...
BURNT NORTON é o primeiro.
O TEMPO PRESENTE E O TEMPO PASSADO
ESTÃO AMBOS TALVEZ PRESENTES NO TEMPO FUTURO
E O TEMPO FUTURO CONTIDO NO TEMPO PASSADO.
SE TODO O TEMPO É ETERNAMENTE PRESENTE
TODO TEMPO É IRREDIMÍVEL.
O QUE PODERIA TER SIDO É UMA ABSTRAÇÃO
QUE PERMANECE PERPÉTUA POSSIBILIDADE,
NESSE MUNDO DE ESPECULAÇÃO.
Eliot nasceu americano. Seus ancestrais vieram da costa inglesa, três séculos antes. A vida de Eliot foi a procura dessa origem. Não por acaso, ele começa sua carreira poética como um modernista, e a encerra como, em suas palavras : " Católico, monarquista e conservador ". É mais um dos americanos que se fez inglês.
Os Quatro Quartetos são sua última grande obra. The Waste Land é melhor. É em Waste Land que Eliot antecipa ( 1922 ) aquilo que hoje nos é cotidiano. Mas estes dias ando relendo os Quartetos. ( 1946 ).
SOBRE FACES TENSAS REPUXADAS PELO TEMPO
DISTRAÍDAS PELA DISTRAÇÃO DA DISTRAÇÃO
CHEIAS DE FANTASMAGORIAS E ERMAS DE SENTIDO
TÚMIDA APATIA SEM CONCENTRAÇÃO
Ele quase consegue sair do tempo. Você lê Eliot e sente que o sentido final de tudo está lá, que falta um passo, uma frase, um segundo... Mas a expectativa não se resolve. Eliot é o poeta de nosso tempo por ser o poeta da irresolução.
Mais um trecho.
O AMOR É EM SI MESMO IMÓVEL
APENAS CAUSA E FIM DO MOVIMENTO
SEM TEMPO E SEM DESEJO
EXCETO EM SUA MÁSCARA DE TEMPO
CAPTURADO SOB FORMA DE LIMITAÇÃO
ENTRE O SER E O NÃO-SER.
Parte dois : EAST COKER
EM MEU PRINCÍPIO ESTÁ MEU FIM.
UMAS APÓS OUTRAS AS CASAS SE LEVANTAM, TOMBAM, DESMORONAM, SÃO AMPLIADAS, REMOVIDAS, DESTRUÍDAS, RESTAURADAS, OU EM SEU LUGAR
IRROMPE UM CAMPO ABERTO, UMA USINA OU UM ATALHO....
... TERRA AGORA FEITA CARNE, FEZES E PELE...
Eliot procura mostrar o tempo como abstração. Nada daquilo que percebemos como antes e depois pode existir. A vida é fora do tempo. Mas acreditamos nesse passar de tempo...
DESPONTA A AURORA E UM NOVO DIA
PARA O SILÊNCIO E O CALOR SE APRESTA. O VENTO DA AURORA
DESLIZA E ONDULA NO MARALTO. ESTOU AQUI,
OU ALÍ, OU MAIS ALÉM. EM MEU PRINCÍPIO.
QUE VALOR PODE TER A CALMA TÃO LONGAMENTE ESPERADA
COM TANTO ARDOR DESEJADA, A SERENIDADE OUTONAL
E A SABEDORIA DA VELHICE ? TERIAM ELES NOS LOGRADO
OU LOGRARAM-SE A SI PRÓPRIOS, OS MAIS VELHOS DE FALA COMEDIDA,
QUE NOS LEGARAM APENAS O RECIBO DE UMA FRAUDE ?
A SERENIDADE NÃO PASSA DE EMBRUTECIMENTO VOLUNTÁRIO
A SABEDORIA ENCERRA APENAS O CONHECIMENTO DE SEGREDOS MORTOS,
Sim, Eliot não nos dá o que gostaríamos de obter. Consolo. Quando ele beira o místico, dizendo que o tempo é ilusão, ele também ataca a facilidade do consolo. Não existe sabedoria ou experiência. Pois o tempo é de cada um, individual, e conhecimento profundo não pode ser dividido. Eu vivo em meu tempo, voce vive seu tempo; e estamos sós nesse nosso particular universo.
NO CONHECIMENTO QUE DERIVA DA EXPERIÊNCIA
O CONHECIMENTO IMPÕE UM MODELO, E FALSIFICA,
PORQUE O MODELO É VÁRIO PARA CADA INSTANTE
E CADA INSTANTE UMA NOVA E PENOSA AVALIAÇÃO DE TUDO QUANTO FOMOS.
....
QUE NÃO FALEM DA SABEDORIA DOS VELHOS, MAS ANTES DE SEU DELIRIO.
DE SEU MEDO DO FRENESÍ, DO MEDO DE SEREM POSSUÍDOS
DE PERTENCEREM A UM OUTRO, OU A OUTROS OU A DEUS.
A ÚNICA SABEDORIA A QUE PODEMOS ASPIRAR
É A SABEDORIA DA HUMILDADE : A HUMILDADE É INFINITA.
TODAS AS CASAS SUBMERGIRAM NO MAR.
TODOS OS BAILARINOS SUBMERGIRAM NA COLINA.
PARA CHEGARES ONDE ESTÁS, PARA SAÍRES DE ONDE NÃO ESTÁS
DEVES SEGUIR POR UM CAMINHO EM QUE O ÊXTASE NÃO MEDRA.
PARA CHEGARES AO QUE NÃO SABES
DEVES SEGUIR PELO CAMINHO DA IGNORÂNCIA.
PARA POSSUIRES O QUE NÃO POSSUIS
DEVES SEGUIR O CAMINHO DO DESPOJAMENTO
PARA CHEGARES AO QUE NÃO ÉS
DEVES CRUZAR PELO CAMINHO EM QUE NÃO ÉS.
E O QUE NÃO SABES É APENAS O QUE SABES.
E O QUE POSSUIS É O QUE NÃO POSSUIS
ESTÁS ONDE NÃO ESTÁS.
Eliot amava sobretudo dois livros : A Comédia de Dante Alighieri e os Upanishads, da cultura hindú. Ele foi moderno sendo antigo, ou melhor, atemporal. Quando ele fala da tolice dos velhos ele fala daqueles sábios que se dizem mestres, dos conselheiros, dos doutores em sociologia, em filosofia, em psicologia, em física, em vida. Ser sábio é negar a vida, pois todo saber está preso ao tempo, cristalizado no momento em que foi emitido/criado, está morto.
O MUNDO INTEIRO SÓ NOS VALE DE HOSPITAL
ÚLTIMO BEM DO MILIONÁRIO ARRUINADO
E ONDE, SE TUDO CORRER BEM, PODEREMOS
MORRER DO ABSOLUTO E PATERNAL CUIDADO
QUE A CADA INSTANTE NOS AMPARA E TIRANIZA.
É SEMPRE UM NOVO COMEÇAR E UMA NOVA ESPÉCIE DE FRACASSO
POIS APENAS SE APRENDEU A ESCOLHER O MELHOR DAS PALAVRAS
PARA O QUE NÃO HÁ MAIS A DIZER.
EM MEU FIM ESTÁ MEU PRINCÍPIO.
Parte 3. The Dry Salvages. ( Todas as partes são nomes de lugares que marcaram a vida do poeta ).
Aqui Eliot diz uma coisa que me toca muito profundamente :
NÃO SEI MUITO ACERCA DE DEUSES, MAS CREIO QUE O RIO É UM DEUS PODEROSO DEUS CASTANHO- TACITURNO, INDÔMITO E INTRATÁVEL
PACIENTE ATÉ CERTO PONTO, A PRINCÍPIO RECONHECIDO COMO FRONTEIRA,
ÚTIL, CONFIDENTE, COMO UM CAIXEIRO-VIAJANTE.
DEPOIS APENAS UM PROBLEMA QUE AO CONSTRUTOR DE PONTES DESAFIA.
RESOLVIDO O PROBLEMA, O DEUS CASTANHO É QUASE ESQUECIDO PELOS MORADORES DA CIDADE-- SEMPRE CONTUDO, IMPLACÁVEL, FIEL ÀS SUAS IRAS E ÉPOCAS DE CHEIAS
RECORDANDO O QUE OS HOMENS PREFEREM ESQUECER.
DESPREZADO PELOS ADORADORES DA MÁQUINA, MAS ESPERANDO, ESPREITANDO.
SEU RITMO ESTAVA PRESENTE NO QUARTO DAS CRIANÇAS
NOS QUINTAIS DE ABRIL
NO AROMA DAS UVAS SOBRE A MESA OUTONAL
NO HALO DOS LAMPIÕES DE INVERNO.
O RIO FLUI DENTRO DE NÓS E O MAR NOS CERCA POR TODOS OS LADOS.
Como eu disse, poetas antecipam. O que Eliot escreve em 1946, hoje todos nós sentimos. Tememos. Vivemos.
São tantos os trechos maravilhosos que minha vontade é copiar tudo para dar de presente a quem me lê...
E TODA SUBIDA É UMA DESCIDA, TODO RETORNO UMA PARTIDA
NÃO O PODES ENCARAR FACE À FACE, MAS ISTO É O CERTO :
O TEMPO NADA CURA, E AQUI JÁ NÃO ESTÁ MAIS O PACIENTE.
...
NÃO SOIS OS MESMOS QUE DEIXARAM A ESTAÇÃO
BOA VIAJEM, NÃO !
MAS ADIANTE, VIAJANTES.
Parte 4. Little Gidding.
NÃO CESSAREMOS NUNCA DE EXPLORAR
E O FIM DE TODA EXPLORAÇÃO
SERÁ CHEGAR AO PONTO DE PARTIDA
E O LUGAR RECONHECER AINDA
COMO DA PRIMEIRA VEZ QUE O VIMOS.
PELA DESCONHECIDA/RELEMBRADA PORTA...
O tamanho de um artista é medido pelo tamanho da tarefa que ele se dá.
TS Eliot desejou transcender a vida.
Se ele conseguiu ? Claro que não. Mas o percurso que Eliot percorreu... a voz que ele nos fez ouvir... as palavras mortas que ele fez reviver...
Ler os Quartetos. Leia com muita calma, em momento fora do tempo. Não busque sabedoria ou beleza neles. Não procure sequer poesia.
Você encontrará tudo isso neles. Mas não procure. Dispense.
Há um maravilhoso momento nesses poemas em que ele diz que podemos escolher entre ser e não ser. Mas que na verdade podemos ter uma terceira opção : alhear. Ficar alheio ao tempo, a vida.
Leia distante da leitura. Talvez dê pra entender. Talvez o segredo se faça transponível.
Leia o rio também. O desprezado rio. Eliot é um rio assim como Yeats é uma nuvem que chove nesse rio. Feliz tempo o tempo de água.