Quando ela fala do anúncio em que a noiva presta atenção no carro que passa na rua, ignorando o namorado perdedor, me vem uma questão à cabeça : não terá sido sempre assim ? Mas logo me vem a resposta : não, não era bem assim. Pois nos romances de Stendhal e Balzac, que tanto vasculham as relações e tanto falam de poder e dinheiro, vemos que os valores eram outros. Se fala da elegancia de um jovem nobre, mas eis a diferença : é um jovem "nobre". Sua nobre elegancia, seu fascínio está depositado em seu porte, no modo como ele fala e pensa. Descreve-se seu bigode, sua bengala, o olhar, o tom da voz, e principalmente sua conversação. Tudo é chic, caro, exclusivo, mas não existem marcas, as coisas de valor são permanentes ( ou tentam assim ser ). Acima de tudo o que mais se valoriza é o nome, o bom nome, e isso está associado a honra. Balzac falar de um barão que tinha um novo castelo, uma nova carruagem ou um novo relógio era impensável. Tudo deveria parecer de família, único, exclusivo e cultivado por gerações. O sedutor, com suas costeletas e seu charuto fedido, deveria transpirar poder antigo, cheirar a conhaque, ter a dureza do carvalho.
Como ela bem nota, nesse meio é a neurose o mal que se instala. Você deve ser filho de seu meio, honrar sua linhagem, e se você não consegue seguir esse destino surge o sintoma neurótico. Não havia uma ditadura do gozo, muito menos do consumo; a ditadura era a de ser alguém, e esse alguém era seu pai. Era mais fácil ser pai. O papel estava muito claro e bastava ser como seu próprio pai fora com você. Se esperava do pai autoridade, exemplo e uma certa distância. O pai fazia coisas. Hoje é inviável ser pai. Quem quer ou precisa deles ?
Durante séculos fomos obrigados a ser alguma coisa. Mesmo que fosse uma mentira, você tinha de ser um soldado, ou um escravo, talvez um artesão, e com sorte na nascença, um nobre. Nada que você comprasse ou fizesse poderia mudar o que você era. Creio que foi o tempo da esquizofrenia, dos transes místicos, dos fanáticos. E da invenção da poesia, do teatro e das filosofias. Mas isso mudou e veio o tempo de fazer dinheiro. Você não precisava ser alguma coisa, você tinha de fazer alguma coisa. Desaparece o vagabundo de estrada, o menestrel, o cavaleiro andante; o homem se prende a uma rotina de fazer dinheiro, tentar ascender pelo comércio, pela indústria, pela politica. Junta-se poder, faz-se contato, acumula-se dinheiro e terra. Engorda-se. Daí vem a era do ter alguma coisa, e essa é a era anterior a nossa, é a época que se encerra com nossos pais.
Se antes você existia pelo que era, se depois você se definia pelo que fazia, agora era o tempo de ser o que se tinha. Possuir coisas era possuir identidade, existir. Maria Rita Kehl, de certa forma, pensa que ainda estamos nessa fase, mas acho que não. Essa época já passou e com ela se foi a histeria. Veja : meu pai tinha uma casa, um sítio, um carro, um telefone, seguro de vida. Ele queria ter coisas, não comprar coisas. É diferente, é muito diferente. Quando ele comprava uma casa era para sempre. Um carro deveria durar o máximo de tempo possível. Um relógio era comprado com a idéia de ser dado ao filho um dia. Se adquiriam coisas para serem parte de sua vida, serem parte de você. Elas precisavam ter valor. Mesmo os livros, discos, roupas, tinham que ser comprados como parte de sua vida, permaneceriam com você e com seus continuadores. Usar um paletó que foi de seu pai.
Hoje nós compramos muito, mas, estranhamente, nada temos. Tudo o que adquirimos já vem com sua data de despedida. Seu carro é objeto alugado, ficará necessariamente obsoleto, assim como tudo que o cerca. Sua casa será derrubada ou reconstruída, e mesmo seus livros, discos, serão abandonados como modas que se foram. Você pagará, cada vez mais, para ter sensações, não para possuir algo. Alugar um livro, um som, um filme, jamais guardá-lo ( inclusive em sua memória ). Apagar fotos, lembranças e diários. Num mundo em que tudo tem um preço mas nada é permanente, como se pode cobrar fidelidade, amor eterno ou compromisso ?
As coisas são mais perversas do que Maria Rita diz. E após a histeria, sintoma do mundo onde tem de se ter coisas para ser alguém, vem a depressão de quem compra coisas e nada possui. Você olha ao redor e não vê nenhum resquicio. Nada de sua história fica. É como se todos fôssemos fantasmas, como se nenhum sinal de nossa passagem pudesse ser percebido. Nossas despensas têm de estar sempre vazias, prontas para abrigar novas compras, que não são reais e nada ocupam. A continuidade se desfaz. Nos vemos cometas, soltos no vazio. Comprando mais um celular, mais um carro, mais uma tv...e jogando fora tudo em 6 meses. E perdendo o prazer em 6 dias.
Se no inicio você se definia pelo que era, se depois você existia fazendo coisas e se até muito recentemente você era o que comprava, agora para ser alguém você não precisa ser coisa alguma ( é até bom ser indefinidamente estudante, pensar aos 50 anos " o que serei quando crescer ?" ), você também não precisa fazer nada para existir como humano ( fazer o que ? O que eu gosto de fazer ? Qual meu dom ? ), e ironia atroz, você também não é mais o que tem ( bom é ser o cara sem casa fixa, sem emprego certo e sem destino ), mas você precisa e tem de ser uma coisa apenas : um comprador. Mesmo que seja uma passagem para o Nepal, um curso de budismo, uma dose de heroína ou um filhote de bulldog; você precisa consumir.
Que armadilha em que fomos nos meter. Jovens pobres com celulares de último tipo grudados na orelha, olhando para os pais e vendo neles uns perfeitos idiotas por não terem a grana do Ronaldinho ou do Belo; jovens ricos cheios de falsa adrenalina, namorando peruinhas feitas para serem exibidas e jamais ouvidas, olhando para o mundo e vendo nele uma vitrine de loja onde tudo é prazer, e onde esse prazer sempre é miragem. Por mais rico que ele seja ele jamais sente que tem tudo aquilo que deveria ter.
Cobrar responsabilidade ? Honra ? Verdade ? Perante o que ? Compradores que por mais que gastem nada têm, só podem ter uma cobrança : continuar sentindo vontade de comprar. Para sempre desejando, querendo, procurando. Já não acumulamos mais, e nem queremos ser ou ter algo; tudo o que sentimos é um desejo vago, uma vontade de preencher um vazio. Comprar. Eis o que precisamos : satisfazer esse desejo, atolar esse vazio, gozar logo, rápido, sem pensar muito. Satisfazer esse desejo urgentemente, em qualquer lugar e em qualquer objeto, pornograficamente. Não importa se a sandália é de plástico e solta a tira, não importa se a blusa estica e é ridícula, não quero saber se a festa é uma roubada, tudo o que desejo é aliviar o próprio desejo, pois não penso mais em prazer, penso em alívio.
Ejacular logo meu dinheiro. Ser um comprador feliz, incluido, na turma, em dia com o que rola no mercado, sorrindo e sendo antenado. Hoje isso é tudo. Acho pouco. Acho pobre. Acho cômico. E é assim...