No começo da viagem ela pega uma telinha e passa todo o caminho vendo um show. Nada que ocorra na estrada, no caminho, poderá despertar sua atenção. Pois bem...
Leio numa revista que na exposição de Matisse a maioria das pessoas tira fotos dos quadros com seus celulares. Passam por todas as obras em coisa de cinco minutos, fotografam e vão embora. Esse texto diz que no início do século algumas mulheres desmaiavam de emoção ao ver essas pinturas. Assim como havia gente que pirava ao olhar Picasso... ele diz que as pessoas precisam fotografar para provar a si mesmas que estiveram lá. Sim. Mas dá pra pensar mais:
O futuro é hoje, já chegou. Vivemos naquele futuro onde a única coisa real É O QUE ESTÁ NA TELA. Fotografam Matisse para fazer com que ele exista, para tentar, em casa, olhando a tela, sentir algum tipo de emoção real pelo pintor. Fora das imagens eletrônicas NADA TEM VALOR.
Vejo um vídeo ( sim, eu também estou nessa ) de um show dos Rolling Stones em 1964. Não, não vou falar do estranhamento em se perceber que Mick Jagger sobrava em 1964. O que entendo, só após ler esse texto sobre Matisse, é que perdemos, e estamos perdendo cada vez mais, a capacidade de nos emocionar. Vendo aqueles jovens berrando, chorando, perdendo totalmente o controle em 1964, noto que hoje não se perde mais o controle. A emoção irracional, que antes vinha como extase estético ou frenesi dionisíaco, hoje quando se manifesta, vem como violencia pura e idiota.
Chorava-se vendo Mick Jagger rebolar. Chorava-se vendo a Portela na avenida. Chegava-se ao paraíso se escutando Mozart. Avistava-se Deus ou o Demo em cada nova paixão. Desmaiava-se vendo Matisse. Ia-se à rua brigar por Godard contra Truffaut. Se morria por Goethe ou por Rimbaud. Alguém se mata por Saramago ou por Coetzee ?
Mas as emoções estão dentro de nós. Ainda seremos humanos por algumas gerações mais. Só que estamos nos tornando incapazes de vivenciar qualquer tipo de emoção estética. Levamos fotos de Matisse ( e de Paris, da praia, da festa ) pra casa porque temos a esperança de poder guardá-las e então, um dia, descobrir seu segredo. Mas não. Nietzsche dizia que falar de um sentimento o matava. Fotografar a vida a congela, esfria, distancia, faz com que o momento se vá.
Na tela revemos o que já se foi. Dividimos isso com os amigos. E nada sentimos de muito sério. A tela prova que lá estivemos, que foi real. Mas a experiência foi apenas isso : um olhar e uma imagem. Registramos dentro de nós como imagem em tela : imagem fria.
Mas, como eu disse, as emoções estão lá, em nós, e precisam sair. E saem : violência absurda e inútil ou sintoma obscuro. Uma dor no peito, uma azia, ganho de peso. Comprimido pra dormir, mais um carro, um novo curso ( caça submarina ? dança moderna ? ), uma briga no trabalho, uma bebedeira na balada, um amor extra. A alma precisa se manifestar, ela ainda está aqui.
A menina gruda os olhos na tela enquanto o carro viaja por ruas e pontes e árvores e rios. Depois ela fala no celular enquanto desce do carro. Liga o laptop no quarto e comenta a viagem com a amiga que está no celular. Então ela coloca um filme no dvd e adormece vendo esse filme. Amanhã ela vai tirar 90 fotos da praia enquanto escuta música no mp qualquer coisa. E o inesperado estará bem longe dela ( ela pensa ), e as emoções serão controladas ( ela tenta ).
Desconcentração completa. Ninguém sabe mais penetrar no azul de Matisse. Nossa mente, bem treinada, só percebe o que brilha, o que se move, o que é editado. Tudo que parece parado nos é incompreensível. O futuro é hoje e neste tempo Matisse é um deus grego do qual não mais se entende a linguagem. Um hieróglifo sem desvendamento. Fotografamos para um dia tentar o desvendar : esse dia jamais chegará.
Se Hitler fosse hoje ninguém se sacrificaria contra ele. Faríamos protestos na internet, gozações na tv, filmes sobre ele, ongs de ajuda às vítimas. Mas não iríamos à rua, não nos alistaríamos na guerra. Porque nossa capacidade de indignação se foi. É o que mantém a turma do mal em Brasília. È o que fez Bush não cair. Nossa ação se inicia e se encerra diante de uma tela. Fora dela, bem, faz de conta que nada conta.
Se neste mundo-futuro só é real o que está na tela, então tudo o que não está nela não é real. Mas a natureza nada tem a ver com isso. Ela continua viva e ativa, como desde sempre, independente de telas ou digitalizações. Então se conseguirmos nos olhar de outro ponto de vista, de fora do que vivemos hoje e agora, percebemos que o irreal somos nós, é a tela, nossa vidinha entre câmeras e imagens. Percebemos que este celular, este pc, este carro é o que é : apenas um brinquedinho. E que TUDO o que temos aprendido a chamar de real é na verdade uma falsificação da vida, uma cópia empobrecida. A imagem na tela não é de verdade. A tela de Matisse é a verdade.
Então aquele cara berrando no show dos Stones em 1964 continua na tela até hoje. Eu o vejo agora. Seu berro não é mais real. É cópia do berro que ele deu em 1964. Mas, aí vem o diferencial, em 1964 ele NÃO GRITOU PARA UMA CÂMERA, ele gritou para o momento efêmero, ele gritou para o mundo ao seu lado, para aquele único segundo : SEU GRITO NÃO TINHA A VONTADE DE SER ETERNIZADO E REPETIDO. Ele não posava. O grito era desajeitada expressão do espírito. Portanto, apesar de ser falsamente revisto na tela, hoje e agora, ele é ao mesmo tempo mensagem inconsciente de um tempo pré-tela. Ele é puro.
Nada mais pode ser puro hoje. A menina de 10 anos posa espertamente para câmeras de celular todo dia e toda hora. Ela aprende a se olhar e a se rever. O cara que berrou desajeitado em 1964, hoje iria berrar sabendo o valor de seu berro. Seria impuro. O repetir de uma coisa vista numa tela. Um berro mais profissional, mais consciente, falso.
Fotografamos Matisse para ter Matisse em casa. Acabamos por não ter Matisse algum em casa e por não parar para observar o Matisse verdadeiro. O irreal é nosso e nada vale ou diz. O verdadeiro tem um valor que não compreendemos e diz coisas que não sabemos ouvir.
Perdemos alguma coisa de sincera nestes anos. E ganhamos imagens em tela no lugar.
Ainda iremos conseguir um dia vencer a morte. Viveremos para sempre, em telas. Vivos para sempre. E jamais nascidos fora dela.
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