HOLANDA, 1974, SONHO E DECEPÇÃO

Como dizia Nelson Rodrigues, "meninos, eu ví ! " Holanda 3x0 Uruguai. Não era o uruguaizinho de hoje, era o Uruguai de Forlan e Pedro Rocha. Após o jogo, Rocha disse que durante todo o primeiro tempo ele não vira a bola. A celeste não passara uma só vez de seu meio campo.
Era a copa da Alemanha, 1974, e a equipe sul-americana fora pega de surpresa porque era um tempo em que ainda poderiam ocorrer surpresas no futebol. ( Não falo de zebras. Zebra é quando o fraco vence o forte. Surpresa é quando algo totalmente surpreendente acontece. Independe de sorte, é puro talento. ) A surpresa era possível porque a tv não podia exibir TUDO o que acontecia no futebol. Conhecia-se um ou dois jogadores europeus durante o ano, e era só na copa do mundo que se podia ver quem era quem. Assim, um técnico tinha a chance de montar um time realmente surpreendente, e pegar o adversário com as calças na mão. Foi o que aconteceu com o Uruguai. Apesar do Ajax ser tri-campeão do mundo ( vencendo os sul-americanos na casa deles. O formato antigo era muito dramático : o campeão europeu tinha de jogar a final na Bombonera ou no Centenário, e o latino tinha de ir a Milão ou Madrid. ) O Feyenord também fora campeão em 1970, mas ninguém espionava nada. Brasileiros, argentinos e uruguaios se achavam os melhores. A Holanda trucidou os três.
Holanda 4x0 Argentina. Foi, junto com a França jogando contra a Alemanha em 1982 e o Brasil contra a Argentina também em 82, a maior exibição de um time que já vi. Com uma diferença : aquilo era realmente novo. Foi a última vez que o futebol evoluiu. Telê Santana e Claudio Coutinho caíram estarrecidos na época. Os tempos mudavam, mas os conservadores acabariam por vencer. O que era esse time ?
Simples. O gênio chamado Rinus Mitchel, maior técnico do esporte, pegou a molecada da perifa de Amsterdã e montou um time : o futuro Ajax imbatível. Moldou uma tática à eles : a pelada organizada, o tal do "futebol total ", todos jogando em todas as posições, todos marcando gols e marcando o adversário, todos tendo a habilidade de jogar como centro-avante e líbero. Deu certo. Deu certo porque aquela geração tinha muito talento, muita técnica e três gênios de elevadíssimo QI : Neeskens, Van Hannigan e Johnan Crujff, este, o mais talentoso jogador que vi jogar. Quando o Uruguai, e depois a Argentina, viram a bola rolar, cinco ( cinco !!!!! ) jogadores se atiravam sobre quem estivesse com a bola, a roubavam, e em vez de lançar a bola ao atacante, tocavam ao "zagueiro" que avançava com ela e tocava ao "volante" que fazia o gol. Tudo de primeira. Mas quem era zagueiro ? Rudi Krol ? ( Após tanto tempo eu lembro todos os nomes ), Suurvier ? Van der Kerkoff ? Quem era volante ? Neeskens ? E atacantes ? Johnny Rep ? Resenbrinck ? Não foi Crujff que marcou Rivelino ? Mas principalmente, porque esse time se tornou a estrela no céu dos fãs de Bowie, Che e Kubrick ?
Simples saber. Eles tinham uma atitude de "não estou nem aí ". Passavam a impressão de jogar brincando, rindo, e de que, de uma hora para outra, poderiam abandonar a partida se ela não lhes desse prazer. Mas havia mais. Eles transavam na véspera do jogo. Na concentração, esposas e namoradas podiam dormir com seus amores. Eles podiam fumar, podiam sair quando quisessem, podiam falar. Eram livres, e seu futebol era espelho disso. Era Dionísio no futebol.
Então entravam em campo. Cabelos longos e desgrenhados, camisas fora do calção, conversando, falando piadas, rindo. E jogavam. Corriam muito, tocavam rápido, e driblavam. Tudo feito com simplicidade, com prazer, com leveza. Foi a última evolução técnica no esporte.
Os técnicos do resto do planeta logo os copiaram. O Barcelona, com Mitchels e Crujff foi quase igual. Mas o Barcelona não tinha o QI dos jovens holandeses. Pois para jogar daquele modo era preciso inteligência, amizade, alegria, ter crescido junto, criado junto. Os outros times adotaram a superfície do estilo : a linha de impedimento, o atacante que também deve marcar, o toque rápido, o carrinho na bola e zagueiros que atacam. Mas era diferente, não era natural, era uma obrigação. O futebol que hoje você assiste, menino, é neto dessa Holanda. O melhor Manchester, o Barça e o Real que vocês viram eram rascunhos pobres dessa equipe e o São Paulo do Telê ( que exibia jogos de Crujff para seus talentos ) foi uma bela tentativa. ( Assim como o Flamengo de Claudio Coutinho e de Carpeggiani ).
O futebol evolui sempre, claro. A ciência do esporte evolui. Correr mais e ser mais forte. As táticas e o modo de jogar é o mesmo desde 1974. A Holanda era um 3/5/2, que se tornava 6/3/1 e metamorfoseava-se em 1/3/6. A Alemanha, que venceu, jogava como jogam os times de Muricy e de 90 % dos times. Jogava defendendo bem e contra-atacando com força. Venceram e não foi injusto, se mataram em campo na final, tinham de vencer, e a Holanda foi vítima de seu único ponto vulnerável : a vaidade. Amoleceram ao fazer 1x0 com três minutos de jogo, perderam gols e interesse e quando acordaram já era tarde. Um time que tinha Beckenbauer, Breitner, Gerd Muller e Sepp Maier não pode ser zebra. Foi a vitória de Apolo. A Alemanha jogava com clareza, objetividade, eficiencia. Com o talento de Franz e Paul, e os gols de Gerd.
Falta falar de Holanda 2x0 Brasil. Foi um jogo feio. O Brasil bateu muito. Poderia ter sido 5x0 para os holandeses. Poderia ter sido 1x0 para o Brasil. ( O Brasil jogou melhor os dez minutos iniciais. A Holanda observou o Brasil de Rivelino, Luis Pereira, Carpegiani, Marinho Peres e Jairzinho no início. Então começou a jogar. ) Para o Brasil foi uma vergonha : jogamos feio e sujo. Telê lutaria contra essa lembrança.
Em 1988 a Holanda ganhou a eurocopa com Rinus Mitchel novamente no banco. O convenceram a sair da aposentadoria. Aquele time de Gullit, Rijkaard, Van Basten deu show, mas nada tinha da "Laranja Mecânica" de 74. Nunca mais aquele estilo, nunca mais aquele sonho. A mais poética das equipes, a mais amada pelos adversários, a mais copiada e a mais frustrante, nunca mais.
Você, jovem que tem como referência Christiano Ronaldo e Kaká, talvez entenda agora o porque de em todas as copas, os caras de cerca de 40 anos, sempre torcerem pela Holanda, e a olharem com carinho e respeito. É que em meio àqueles Davids, Bogardes, Seedorfs e que tais, jogadores tão comuns, tão como todos o são, nós temos a esperança de rever, nem que seja por cinco minutos, a festa laranja, a orgia de pernas que se confundem, o prazer da pelada. É como se fantasmas pairassem sobre o campo verde onde joga a Holanda. E nos frustramos.
Meninos eu ví. E não me esquecí.