Demoro muito para escrever sobre este disco, pois temo não fazer justiça a sua beleza. É um disco cheio de segredos, de recantos úmidos, de radiante fé e de sombras tenebrosas, assustadoras. Nada nele é explícito, portanto, é incompreensível para cultores da pornografia. Ser sutil é seu maior mérito, ser obra de gênio. Arthur Lee, homem impregnado de Lewis Carrol, Poe e Shelley, bruxo leve/ voador, um pássaro.
Sua gravadora, Elektra, colocou todas as fichas neste álbum. Mas não estourou, nem poderia. Excesso de sofisticação, fineza em tempo de grossura, e acima de tudo, Lee era um negro, líder de banda branca, fazendo música nada africana. Não há swing aqui.
Antes de ouvir este disco, para quem se interessar, sugiro que primeiro procurem no youtube seu show em Glastonbury. Para vocês meninos, creio que será mais familiar assistir Lee no palco, com seu carisma fantástico, sendo aclamado pelo que sempre foi : gênio fecundador, músico hiper plagiado ( ontem, hoje e sempre. Até Madonna o roubou. ) Se você gostar do show, lindo, talvez você consiga entender o disco. Se não te emocionar, sinto por sua alma, estás definitivamente corrompido.
Primeira faixa : alone again or- é uma cascata de violões e de melodia que dão ao que virá seu caráter, música feita de água. Fluida e incorruptível. A harmonia ameaça desabar todo o tempo, mas se mantém em suspenso, à tona quase num milagre de engenho. A música, feita cachoeira, muda de rumo diversas vezes, e aqui há o maior encanto deste gênio : sua música muda a cada minuto, fica mais intrincada, complexa, mas jamais adquire peso e nunca parece pedante. O segredo de toda arte perfeita é jamais parecer difícil e sempre ser leve. A alma comunga com o universo desta canção.
a house is not a motel. Quantas vezes isto foi copiado. Quantas mais será imitado ? É a menos suave, tem um solo ácido de guitarra elétrica. Básica para a geração dos anos 80 inglesa, paira na geração inglesa de hoje como desafio etéreo. O Love foi a mais inglesa das bandas, apesar de ser da Califórnia.
andmoreagain. Alguém pensa à janela na chuva que cai e no amor que faz o coração bater arrastado. A melancolia impera, a dor vem em sedas rasgadas. Como tudo no Love, a música varia e quase afunda, mas o rumo não se perde. Isto não ter sido um hit atesta a burrice das paradas, em 67 ou em qualquer tempo.
the daily planet. A vida é urgente. Chove cristal de imaginação. Música melhor que isto ? Onde ? É brilho visual, música que aquece a alma e os ossos. É como nascer em meio a flores e sol, tudo é imperiosamente belo aqui. Uma pausa que remete a dúvida no meio da canção e então vem mais um milagre. Tudo dá certo e volta a melodia original : mas ela se enche de ácido ! Eis Lewis Carrol !!!! Sobe e desce e vai e vai e vai....... roda em cores e risos. Arthur Lee foi um anjo se anjos pudessem ser.
old man. Num bosque há uma torre mofada e lá um velho. Faço-lhe um pedido e me sinto velho como ele, ou mais. É música medieval, de sempre, é melodia para se morrer de tristeza. Mas, milagre ! ela cresce e renasce ! Violinos, este é um disco de violinos e desse piano dedilhado por mãos de gelo. Nada na música de Arthur é força. Tudo é poder.
the red telephone. Abre-se uma outra porta : cuidado ! Você vê mortos do outro lado. Mas você crê em mágica e muda de canal : olhe os olhos de Lee, o que você vê ? O que você sente ? Passos dentro de seu corpo e a vida flue dia a dia a dia... ser feliz é não saber o quanto se é infeliz... pare e veja : eu sinto você uma vez e estive em você duas... e às vezes viver é estar entre números e fora de tudo. Esta é a mais mágica das canções, ela é fora de tempo, fora de você e de mim e de mundo. Roda e roda e enlouquece e é um perigo em forma de poesia. Leve como dormir no verão.
maybe the people. A canção de estrada do disco. Talvez seja a mais simples e a mais influente. É quase feliz e chega a ser solar. Os metais guiam toda a melodia.
live and let live. Um gnomo a canta. Medieval ao extremo. Mas muda, tudo muda neste disco. Ela é na verdade um enorme ponto de interrogação. Um encontro de dois rios que vão para uma queda que dá no espaço e volta ao nascedouro. Há ira, mas existe a fonte também. Ela é uma prece e é blasfema. Agulha no ponto vital.
the good humor man. Ironia. Uma cançoneta de ironia. Elegancia profanada : Lee estraga a popicidade que ela poderia ter. A letra é alegrinha, tola, infantil e se torna ferina por tanto ser boba. Arremedos de outras possíveis melodias se vão. Ele mata sua beleza sendo mais belo do que se poderia tentar ser.
bummer in the summer. Uma homenagem a Dylan. Mas é um Dylan celta. Letra longa que se vomita, mas a melodia é tingida por música tonta, folk de sonho, acordes de poetas provençais turbinados. Dylan de erudição, Dylan à Paul MacCartney. É lindo.
you set the scene. O fim. Um hino. Você anda por onde andou e não sabe que já lá andou. É pra cantar junto se você souber cantar... ela roda.
Love. Forever. Changes. Após isto, a decadência. Arthur Lee não poderia repetir o que já fizera. Então... o nada. A geração de 1999 lhe fez justiça e lhe paga tributo até hoje e para todos os sempres. Ouvir isto é amar.