Eu estive entre os dois rios e caminhei entre tamareiras. O som do vento nas folhas e o som da água que corria era tudo aquilo que eu queria. Vaguei no horizonte que jamais tinha um fim e morei no centro do círculo onde tudo que acontecia acontecia para mim.
E nós adorávamos o sol e temíamos a noite porque as feras rugiam e nos farejavam. A terra era mãe onde amávamos a vida sem saber. A liberdade não fora inventada, mas nós nos criávamos. A chuva me alucinava e os raios vinham dos braços do pai. Meus primos e eu e nós olhávamos./
Eu descí para outro rio e lá ouvia música de flautas e de tambores e notei que em mim existia outro. Mergulhei na água azul no fim dourado da tarde e pude ver a imagem de nosso corpo. Perdido na mata entre macacos senti o horror de se perder entre a vida e a alegria de se esquecer da vida. Nossas cinzas repousam no rio./
Quando subi cruzei outros dois rios e conheci a neve. Tranquei-me entre toras e fechei meus olhos. Sonhei com a volta do sol e com o gosto do vinho. Olhando para o fogo fiz perguntas que pergunto ainda hoje. Nós somos essas perguntas. Os lobos batiam à porta e nós cantávamos. Quando os pingentes de gelo começaram a derreter eu descobri a palavra gratidão./
Ao cruzar outro rio vislumbrei meu primeiro mar. Foi olhando o mar que em mim nasceu a idéia de eternidade. O mar se move e sempre é o mesmo. Caí apaixonado pelo cheiro salgado, caí extasiado pelo som que é o som da vida, e caí enfeitiçado pelas cores de seu ritmo. Atendi seu apelo e me fui mar adentro./
Quando vi seus rochedos pensei ter encontrado o inferno. Mas ao pisar em seu verde sem fim eu entendi o que seria viver dentro da liberdade. Meus pensamentos voaram como insetos e criei a idéia de fadas para entender esse encanto. O vento era frio mas tudo falava comigo. Meus dias eram de água e de luz e as noites de canção ao redor do fogo. Servi ao senhor da terra e senti o açoite e a fome. A terra verde tornou-se rubra. A liberdade, perdida, agora é desejo./
Cruzando um mar que é rio chegamos à terra escura. E cruzando outro rio notei que tudo era pedra e areia. Criei cabras e pastoreando deixei que o círculo se refizesse. O sol rodava ou eu rodava ? Confundi-me com as cabras e pensei onde estaria nossa diferença. Foram séculos entre animais e na solidão correta das pedras e das oliveiras. Vagando por primos e por estrangeiros, nós sabíamos os segredos do chão e do ar. E a chuva sempre nos redimia./
Conheci a religião dos mártires. Como antes conhecí a da natureza. Segui seus preceitos. E entendi que na submissão mora um tipo de liberdade. Mas o vento da tarde parecia carregar parte de mim para longe. E eu falava com os anjos sobre isso./
Mais dois rios foram cruzados. No primeiro eu vi a guerra. E lá matei e fui trucidado. Fui eu quem violou a moça de negro e fui eu quem teve a cabeça decepada. O rio turvo de sangue e meu rosto crispado de emoção. Ao cruzar mais um rio esquecemos de tudo e eis eu bisavô entre as uvas./
Podar as vinhas e sonhar com a boa estação. Pisar o fruto e viver no perfume dos tonéis e das bagas. Beber o vinho que nasceu do sol e da terra. Entender o sangue. Quantas festas para o verão ? Onde conheci amores risonhos e onde pulei em louvor a vinha. Os natais ao pé do lume onde a comida era melhor e o vinho se oferecia. A aldeia se iluminava e minhas mãos eram frias. Eu dormia escutando a respiração dos bichos que viviam ao lado. E amanhecia com galos. A escada rangia e a água do rio era fonte de brinquedos e de roupa branca. Meu prazer era casar os outros e nisso eu vivia./
Então ao lado do bom rio eu cortava a pedra. Ia bem cedo rumo a pedreira e media a rocha e cortava certo, no ângulo exato. Tomava goles de vinho verde que deixava na água para resfriar. Meu burrico comigo, suávamos subindo e descendo até a casa que eu fazia. Eu fazia casas de pedra. Amava suas fachadas avarandadas onde se avistava o sol entre montanhas. Amava a adega fria onde as pessoas se esqueciam do verão. Eu destruía minhas mãos e sorria com a casa que nascia. Fui parteiro de famílias./
Então cruzei um oceano e em navio cheguei a outro rio. Morei em quarto cercado de córregos e andei entre ruas de sombra e salas de cinema. Eu amava os cowboys e os soldados. E percorria ao longo do rio a trilha do meu dia. Ecos de passos na madrugada, futebol com primos nos domingos e o amor num banco de jardim. Nós amávamos as meninas./
Eu agora hoje, vim no tempo do fim dos rios. No começo de sua morte, quando eles se tornaram refugos. Sou esse rio e todos os outros rios, vários rios, que viram e me deram uma vida. E sou a água que veio de longe e vai para além. Os passos todos eram meus e sendo meus eram nossos. E estarei no final do último dos rios e me sentarei chorando sua morte. Nascemos sentados ao rio. Partiremos ao seu leito seco.