SOBRE O LIVRO DE GILBERTO SAFRA

Ora, jamais existiu período histórico tão preso a linha reta. A redondeza do tempo kósmico, onde tudo sempre se repete ( dia/noite, chuva/sol, verão/inverno, morte e nascimento ) é o tempo do primitivo, do selvagem, da natureza. Esse Eden foi perdido e é extinto.
Nosso é o tempo da linha reta, que Safra chama de tempo histórico. Tempo onde o ontem é morto e o futuro é eterno desejo. Nesse tempo o futuro é infinito e somos todos jogados para a frente, marchando em nossas baias no trote acelerado. Tempo da ciência onde a transcendência é não só impossível como indesejada. O homem reduzido a ser biológico, número catalogado em classe e série, comprador compulsivo de ilusões moderninhas e de medicamentos consoladores. Nessa reta, nesse trilho, a ruptura se torna inviável, pois para pular da linha há que se cair no vazio. É como se fora do trilho nada mais houvesse. Kafka.
Mas há. Há o gesto criativo que cria seu próprio tempo, seu próprio universo, seu instante efêmero porém absoluto. Ele rompe com o círculo do kosmos : pois nada tem de natural; e rompe com a reta, pois não é parte do tempo contado e catalogado.
Esse tempo explica o porque de me sentir tão GRANDE quando leio Shakespeare. Nunca existiu o tempo de Shakespeare, ele jamais foi contemporâneo. Em 1600 ele já era fora da reta, ele não é do passado, nega o hoje e não anuncia o futuro. Ele vive e reina em seu mundo extra-mundo. Mas ele existe por e para nós. Shakespeare criou por necessidade íntima, mas visando ao universo humano : ele é um homem maior. O pleno. A criação pura.
O mesmo sinto diante de Beethoven, Michelangelo, Cézanne ou Eliot. A gigantesca força extra-universo do homem. O dom de criar tempo e mundo própio. O transcender o efêmero.
O mundo do círculo natural não toma conhecimento desse gigantismo. Para esse mundo eles não existem. Possuem uma linguagem indecifrável e herética. E para o mundo da reta, mundo que precisa ser medido e vendido e que toma o valor de tudo por sua função, nesse mundo eles precisam ser vulgarizados, transformados em ponto de reta, precisam ser domados. Explica-se então o gênio, disseca-se o processo e vende-se o segredo. Transforma-se um mito em parte do trilho.
Mas em sua gigantesca luz ele resiste. Vive fora do tempo e fora do que é explicável. Transcende.
Todo gesto criativo é tentativa de sair de seu meio, de se erguer sobre seu tempo, de escapar do destino. Para quem vivia no círculo natural seria domar a natureza, explicar os deuses, subjugar o fado; para nós, pontos em reta, escapar do passado e do futuro, habitar o atemporal, visitar a terra dos gigantes, conhecer a transcendencia. Ser poeta. E o mundo nunca desprezou tanto o poeta e jamais necessitou tanto deles.
Mas cuidado : tudo pode ser vendido ! E vender rebeldia, vender o anti-"mundo atual", vender a ovelha negra é idéia amada por comerciantes de falsas idéias. O poeta verdadeiro se comunica com gente, não com grupos de mercado, escreve para uma pessoa, e nunca para um público. Pois não existe o público. O que existe é o eu e o voce.
Há um texto de Hannah Arendt no livro, que diz que todo ato criativo é rompimento com o que o cerca. É surgimento do inesperado. Como fazer isso num mundo onde o inesperado é cobrado ?
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Não me interesso mais pela música pop feita hoje porque ela não tenta mais sair do tempo. Assumiu descaradamente sua contemporaniedade descartável. Ela propõe ser retrato do hoje e sómente do hoje-agora. Ela se equilibra na linha reta e me causa enjôo. Os poucos que tentam sair disso e transcender acabam revisitando transcendências do passado. Não criam um novo mundo extra-tempo, visitam o universo de outro, o já criado. Estão irremediavelmente presos.
Quando assisto ( por exemplo, APARIJITO de Satiajit Ray, que vi ontem ), um grande filme, percebo que em suas imagens existe um tempo que é só dele. O filme não fala de um momento específico. No ano em que foi produzido ele não era " de agora" , e hoje, 40, 50 anos depois, continua sendo fora de tempo. A criatividade desse tipo de obra cria seu universo, seu momento, sua vida. Ele existe como coisa nunca moderna e nunca passada, nunca de hoje e jamais ultrapassada. Ela é o gesto de criação eterno.
Kurosawa é isso. Bergman é isso. FACE A FACE ou MORANGOS SILVESTRES ou PERSONNA não são de tempo algum. As questões que levantam e o modo como se comunica conosco são de um tempo extra-tempo. Negam o passado, negam o agora e negam o futuro. Criam seu tempo. Quando Bergman é menos gigantesco ele se torna contemporâneo, moderno, preso, frouxo. Basta comparar o Fellini de CABIRIA ou AMARCORD com o de A DOCE VIDA ou ROMA : os dois primeiros criam seu tempo, os dois últimos são do agora.
Adoro Godard, mas reconheço que sua força era a força do momento, do moderno, do contemporâneo. Ele, como Antonioni ou Cassavetes, jamais criou seu tempo. Retratou criticamente a linha, mas não conseguiu transcender. Hoje, adoro Joel Coen, Almodovar, Eastwood, Tarantino mas sei que não há neles um novo universo. Seus filmes, maravilhosos, são frutos do agora, e serão velhos com o passar do tempo. Deliciosos, porém presos. Tim Burton tenta desesperadamente transcender. Terá conseguido ? Ainda não. Ele é alienado do agora, mas isso não significa criar. Negar o momento é ato de desespero, criar um mundo atemporal é genialidade.
Belo livro que trata de tudo que me interessa : tempo, criação e morte.
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