A PO-ÉTICA CONTEMPORÂNEA- GILBERTO SAFRA

Ando pelas ruas fotografando. Fotografo casas antigas, ruínas, ruas congeladas no tempo, árvores. Estou a procura de alguma coisa.
Depois, a noite, andando pelas ruas desta cidade, sinto uma constante saudade do escuro. Esta cidade não tem mais lugares escuros. Me cai nas mãos um livro que fala o que eu sempre soube. Mas não falo, pois quem pode ouvir ?
No mundo de Bach, de Spinoza ou de Shakespeare, existem sentimentos de dor. Tristeza, desespero, falta de coragem, coração partido, decepção. Mas até a geração romântica, é desconhecido do homem o sentimento de vazio, e é só no final do século dezenove que nasce o desespero existencial, o sentimento de absurdo da própia vida. Porque ?
O livro de Safra verbaliza isso. É com a revolução industrial que se começa a destruição do ambiente, da praça, da floresta, da sua face. Como dizia Whitman, voce é seu companheiro, voce é sua rua, voce é sua casa. O progresso derruba tudo isso. Voce é o que ? Com a revolução, alemães e ingleses primeiro, assistiram a transformação de toda referência. Seus locais sagrados não eram mais seus, sequer existiam. Eles criaram o romantismo como grito de protesto contra a futilidade dos novos tempos, a mecanização da vida. No final do século xix, o grito se torna gemido, contra a coisificação do homem. Neste inicio de milênio, apenas aceitamos docilmente como fato único : somos máscara sobre máscara.
A máscara sofre o desespero de não poder sentir. De não existir. Da total virtualidade. Quando meu pai morreu fui uma face. Sofrimento puro, completo, sem disfarce ou modelo. Eu era eu-mesmo. Um sofrimento terrível, porém saudável, verdadeiro, inteiro. Eu me sentia construir. O sofrimento da máscara não constrói nada. Nem destrói. É inexistente.
Eu estive nos dois mundos, posso testemunhar.
Minha infância foi a abençoada infância da aldeia. Todo habitante sabia quem eu era, de onde eu vinha, do que eu gostava. Cada pedrinha no chão, cada árvore e cada córrego tinha um nome para mim. Tudo possuía sua história, seu nascimento e seu fim. A noite era escura e assustadora, com sapos e ratos e toda manhã parecia um novo momento de descoberta. E mais importante : as coisas não pareciam ser transitórias, eram para sempre.
A ruptura desse idílio veio com a mudança de casa. Todas as histórias foram abandonadas e as ruas que eu via não falavam comigo. Nesse novo árido mundo, eu precisei criar dentro de mim pontos de apoio, modelos e moldes para seguir, para poder ser e existir. Foi uma armadilha, e esquecí tudo o que eu era e tudo o que eu precisava ter. Deixei de ser ruas, árvores e gente que vivia comigo; me tornei o que eu quisesse, virtualmente potente, mas eternamente eu. Criei máscaras. Vazios.
Então voce pensa se tornar aquele cara que voce admira. Um ator, um personagem de filme, um rock star. Voce se torna a máscara de uma máscara que já nasceu como máscara de outra máscara. Quando essa coisa fantasiosa cai, o que voce percebe é que voce é um estranho para voce mesmo. Nasce um terrível horror : um sentimento sem nome, sem história, sem verdade, sem porque : o completo vazio. Voce não sofre por alguma coisa. Apenas sofre por não ter pelo que viver ou sofrer. Virtualmente.
A única referência de futuras gerações : imagens coloridas sem passado, raiz ou verdade. O que será delas ?
O livro fala mais. ( E é uma pena ele falar tanto de Dostoievski e passar ao largo de Tolstoi ).
O que é o sexo hoje ? Existe nele uma narrativa, um encontro de duas almas, um reencontro com a verdade ? Isso não está no livro, mas eu vejo cada vez mais que sexo é a única chance que ainda resta ao homem, de se tentar fazer alguma coisa puramente instintiva, animal, não racional. O que é uma bobagem ! Na maioria dos casos, suas transas são puramente racionais, tanto em escolhas como em ocasiões.
A sensação geral é : negamos nossas origens ( quando as temos ). Seguimos modelos que nos vendem ( mesmo os anti-modelos ). Vestimos máscaras sobre máscaras, falamos bobagens sobre bobagens. Viajamos para lugares que não escolhemos. Namoramos pessoas que nada têm a ver com nosso interior, negamos tudo em nós que não seja moderno, eficiente, bacana; nos obrigamos a vestir armaduras de vazio. Que vida é essa ?????
Voce tem amigos incapazes de fazer algo que não seja alguma coisa "divertida" vista em um bilhão de filmes ou séries de tv. Bebem, gritam, dão pulinhos alegrinhos e agarram a gostosa tipo série de tv ( desculpe a repetição, mas é assim ). Eles simplesmente são incapazes de escutar ou de parar de fazer alguma coisa. Ficam ligados, funcionam como maquininha. Têm uma função : são divertidos, bro !
Voce corre o caminho de Santiago. Mas nunca foi católico. Vai a Amsterdan, mas nada sabe de Rembrandt e nunca foi bem louco. Aluga um studio em Paris. Para tentar se sentir meio artista. E anda por Roma. Sem sentir nada da beleza ou da magia do lugar. Voce vai porque vai. E adora... Como adora Londres por ser moderna, Praga por ser romântica e Berlin por ser dramática. Voce ama o que pedem pra voce amar.
Ouve superficialmente o que foi criado para ser ouvido superficialmente. Assiste filmes que são a cópia da cópia da cópia da cópia. Luzes de máscaras em cenários falsos com personagens feitos de papel de jornal. Nada de vivo, nada de verdadeiro, nada de real. Mas ok. Voce pagou 25 reais e quase sentiu uma emoção. Uma mísera emoção. É tudo o que voce pede : uma mísera emoção. Inteira, redonda, envolvente, e que dure.
Trouxa ! Tudo na arte de hoje é conceitual. Nada de emoção. O que se procura é a sensação. A tv é uma sensação ( sinto que foi bom, sinto que foi válido, sinto que é engraçado, sinto vontade de rir, sinto vontade de chorar ). A arte verdadeira é emocional, pois lida com a raiz, a origem, a face. ( É trágico, é cômico, é patético, é maravilhoso, é péssimo... ).
Se o homem é sua cidade e seus companheiros ( é o que o livro diz ), que homem é esse com uma cidade em eterna mudança, e com companheiros ausentes ou virtuais ? Que homem é esse com rostos amigos em telas ( acredite, são imagens sempre falsas ), com vozes distantes em celulares que tocam a toda hora mas que nunca abraçam. O que há de humano em se passar por ruas que hoje são diferentes de ontem. Voce acaba tendo de se adaptar. E se torna tão fantasiado quanto a foto da tela do orkut, tão frio quanto a mensagem gracinha no celular, tão esperto quanto o personagem da série de tv e tão mutável quanto as ruas derrubadas e reconstruídas sempre. Anônimamente mais um. Sempre alegre e nunca feliz. Sempre moderninho e nunca eterno. Fazendo, não sendo.
Mas um dia ( e eu passei por isso ), voce perde a máscara. Cai. E tudo parece ser para voce aquilo que sempre foi e nunca esteve tão percebido : nada. Todas as suas referencias se vão. Pois elas nunca foram de verdade. Caem as certezas. Que certezas ? Voce se vê estrangeiro dentro de voce mesmo. Isso é ser moderno : um estrangeiro dentro de um vazio.
Daí voce procura se reconstruir. Vai atrás das pegadas, ver onde a coisa se rompeu. Procura os restos da aldeia, que são os vivos restos de voce mesmo, começa a assistir filmes que tenham algo de real, de vivo e que mesmo em sua mais louca fantasia, tenham a fantasia sonhada pela mente humana, e não planejada pelo grupo de marketing. Voce procura a face irretocada da vida, ou ao menos a máscara primordial.
E uma noite, ao olhar o espelho do banheiro, espelho que sempre lhe falou de vaidade ou de raiva; ao olhar esse espelho, voce não mais verá um rock star ou o ator com quem voce se parece. No espelho voce não mais verá o cabelo fashion ou o sorriso safo. Nesse espelho estará defronte a voce um homem. Homem que voce viu na aldeia, anos atrás. Homem que cheirava bem, que parecia de verdade, que era um mundo em sí. Voce se assustará em ver no espelho esse homem. E notará que ele sempre esteve alí. Obscurecido por máscaras.
Em voce verá seu pai. E isso eu chamo de a verdade. Triste e feliz, real.