SHOPPING CENTER E SERRA DO MAR

Neste ano o Natal no shopping vai ser como sempre é : nem frio nem quente. Não vai chover e nem irá fazer sol. Todas as lojas terão a idade que sempre tiveram : idade nenhuma. E as pessoas serão exatamente as mesmas. No shopping não existe tempo. Tudo parece ser eternamente novo, limpo, sem cheiro. O shopping não fede e nem cheira. O futuro deve ser assim : clima, luz e tempo estáveis. Vitrines e praças de alimentação. Gente andando sem sair do lugar. Sorrisos ocos e filmes frios. Seus olhos, vendo uma diversidade que é sempre a mesma, adormecem e seu cérebro nada indaga.
Estive em Paris três vezes. E em cada vez que fui fiquei mais chateado. A cidade tornou-se plástico saneado. Perdeu sombra, perdeu odor, perdeu seus dentes sujos e sua roupa rota. Deixou de ser poesia e virou Miami. O mundo vira Miami e Miami é um shopping. Ainda existe a Sacre Coeur, ainda há Notre Dame e o Bois, mas Pigalle virou piada e Montmartre é ficção. O que lembro são túneis de metrô, avenidas com lojas e o horizonte com prédios banais. Minha Paris é morta.
Mas a Serra do Mar não.
Ela é a serra que conhecí aos 6 anos, dentro de uma kombi, chovendo, descendo pela estrada velha e rindo rindo rindo... Ela está alí, gigantesca, pronta para ser admirada. ( Não me diga que voce é desses idiotas que passam por ela correndo e de olho somente no carro da frente... voce não vive então... ).
Ela é a mesma de quando meu pai veio do Rio, via Santos, em 1950. Os mesmos contornos, os mesmos abismos e o mesmo verde. ( Talvez mais verde que hoje, mas a arquitetura é a mesma ). O ar que ele respirou continua lá e suas cachoeiras viram meu pai as admirando. Agora eu as olho também e me apaixono por elas.
A serra me chama. Quando passo por ela não há amigo ou amor que me distraia. Meus olhos são dela e sinto um apelo de me jogar em seu mato e me perder para sempre. Morrer na serra seria belo. Mas não no asfalto que não é serra, e sim na mata, que é vida.
O tempo inexiste alí. O que viram os bandeirantes eu vejo agora e sei que todos eles se apaixonaram por sua cor. O pássaro que voa e o outro que canta são desde sempre os mesmos. E meu espírito se agiganta quando vê o sol sobre o vale onde toda a paz é possível.
Você jamais entenderá o que sinto. É meu lugar. Tenho a sorte de ter meu lugar mais precioso, tão perto. Não há Bahia, Paris, Ibiza ou Berlin que lhe façam frente. Nada é mais mistério intricado. Vejo em sua trilha o nascimento da vida. Vejo um primata que sou, um mamifero que capturei, uma árvore que adorei. É minha mãe, meu deus e meu túmulo. Pois minhas cinzas para lá serão deitadas. Para sempre estarei aos pés de suas árvores e alimentarei sua vida e serei chuva. Até o para sempre.
Mas tem o mangue, lá embaixo. E preciso me conter, dentes cerrados, para não me jogar feito louco mangue adentro. O cheiro e os caranguejos. Os urubus que eu adoro. Menino vendendo banana, bicicletas... eu amo tanto tudo isto que chego a enlouquecer de alegria. Se tivesse coragem eu faria um barraco e viveria na encosta. Ouvindo a chuva na telha. O cheiro do mato e da terra molhada. Nada é mais bonito.
A serra do mar é a coisa mais sagrada do mundo. Quando Platão esteve por aqui ela lá estava. E quando Shakespeare morreu ela era o que vejo hoje. Um pássaro negro enorme que voa e pousa e canta. É aquele. É o mesmo. Quando desço no amanhecer e sinto o calor do novo dia. Ou quando o frio do inverno invade gelado minha roupa. A neblina úmida e a garoa que nunca passa. O trem e as fontes. E lá, o mar...
Tirem a serra do mar, tirem o mar da serra, tirem deste mundo este lugar e nada mais me consolará. É o seio cheio de leite. Eco do meu riso. Nada foi meu amor maior e nada me é mais precioso. Eu morreria e mataria por ela. Pois eu vivo, sempre, com ela.
Então deixe que isto continue a ser um anti-shopping. Pois aqui o clima é sempre o que não se controla. E aqui as peruas e os playboys não sobrevivem. Tudo é gasto, sem brilho e com cheiro. Paraíso de insetos e de febre, úmida fonte de inesperado. Anti-shopping. Anti-Paris. Nada é racional em sua mata e nada foi nunca replanejado. O que ví aos 6 vejo aos 40 e verei aos 80. As ruas de suas árvores são indomáveis e seus habitantes insistem em não se mudar. A serra repele o plástico e não ambiciona Miami. Por mais que você judie dela, é a mesma.
Me deixe pensar na Serra do Mar. Sonhar com a Serra do Mar. Respirar seu ar e sentir sua chuva. Um dia terei a coragem de me jogar em seu verde, de viver em seu mundo e de me deixar ficar em seu calor. Nada me é mais precioso. Nada me faz mais feliz. Nada é melhor. Minha Irlanda tropical, meu cinema de verdade, minha sinfonia sem dono. Amar a serra é amar a vida. Deixe-me lá então. Esqueça-me lá. Quero ser ela e que ela seja eu. Correr até dormir nela. Ter seu cheiro meu. Crescer nela e chorar por ela. Me deixe ser a serra. Me deixe. Pois a serra é meu mundo, meu mar e meu sempre. E ela me chama. Escuto sua voz sempre. Eu vou. Já.