AUSTERLITZ - W.G. SEBALD

Dois meses atrás, mais ou menos, lí e comentei outro livro de Sebald, "Vertigem". Contei que o descobri numa muito entusiástica coluna de Marcelo Coelho em que ele dizia ser o autor alemão " o único grande autor da atualidade ". Com este segundo livro que leio, "Austerlitz", descubro, afinal, o porquê de tão grande conceito. Sebald é gigantesco. Em tempos de formigas que escrevem sobre seu diminuto umbigo, Sebald alça vôo e encara de frente o cosmos da existência. Ele é o autor central dos últimos trinta anos, talvez quarenta. Pode ser colocado ao lado de Thomas Mann ou de T.S. Eliot como antena de seu tempo, autor de uma preciosa radiografia de nossa alma.
O livro tem fotos que ampliam a narrativa e não tem nenhum parágrafo. Um homem, Austerlitz, conta ao autor, em encontros esparçados, em Paris, em Londres, em Praga, sua história, a história de sua família, a história da Europa, a nossa história ocidental. Pois sutilmente percebemos que Austerlitz é a consciência européia, a alma do ocidente. E assim, cada paisagem encontrada, cada nome citado, cada viagem feita é uma epopéia, uma odisséia, uma guerra e uma paz. Tudo vai se encaixando como um vitral : Napoleão, Aldous Huxley, Evelyn Waugh, O País de Gales, a feiúra belga, o colonialismo, Fred Astaire, Bergman, Alain Resnais, os mochileiros, Balzac, cemitérios, museus, estações de trem, metrô, judaísmo, memória, tempo, morte, mariposas, escadas, bibliotecas, guerras e mais guerras... Na narração não existe tempo. Sebald não crê no tempo. Para ele, passado, presente e futuro estão todos vivos aqui, agora, e para sempre.
Não pense que o livro cheira a lição de história. A narrativa é muito íntima, pessoal, discreta. Você precisa pescar os significados maiores, interagir com o autor, trabalhar e se tornar ativo. Se você nada souber sobre a história ( não é vergonha, você é apenas uma vítima, diz o livro ), mesmo assim Sebald o impressionará. Seu estilo, uma espécie de Proust da era insensível, é hipnótico, possui uma voz de sonho, de delírio e de pesadelo. Sebald consegue unir Proust à Kafka, Mann à Joyce. Um mestre. Austerlitz é um labirinto.
Toda a peregrinação sem rumo de Austerlitz ( ele é um mochileiro ) se revela uma cega busca pela memória. Austerlitz tem sintomas. Ansiedade e uma sensação de não existir, vaga e cada vez mais insistente. Existem lapsos em sua mente, coisas que ele não quer encarar. Austerlitz luta contra sua memória. Austerlitz quer esquecer. Ele quer não-ser.
Mas o seu legado lhe assombra em fotos, em quase-recordações, em revelações. E ele persevera. Precisa remendar sua alma, unir o que foi rompido, olhar as chagas para poder superá-las. Austerlitz precisa existir. Nós vamos com ele. Árdua jornada. O livro é um poço.
A Europa que nos é mostrada é casa de horror. Gente em constante mudança, desenraizada, sem identidade, com suas paisagens virtuais, sua Novaiorquisação, seu histérico pavor de tudo o que é real. Pois os europeus vivem, ainda e para sempre, a loucura da segunda-guerra, o gueto em que se tornou o continente, confinados em hiper-funcionais zoos, com sua racionalidade falível, fugindo de tudo que lhes desperte a memória, fugindo e se imbecilizando, se acovardando mais e mais, sendo vaquinhas em fazendinhas alemãs, sendo anti-literatos em Paris, sendo mortos-vivos em Praga, sendo fantasmas em Gales. Mariposas secas. A Europa é um quadro de borboletas secas.
Sebald é católico. Não é mais um autor judeu nos recordando o holocausto. Ele vê esse crime, um crime que define tudo o que somos e seremos, não como vítima direta, mas como alguém que paga pelo erro cometido. O homem chegou a um nível tão hediondo de maldade pura, produziu um pesadelo tão perfeito, tão racionalmente bem feito, revelou-se possuidor de um instinto tão destruidor e sádico, que nunca mais poderemos olhar para nosso ser com a inocência que havia até antes dessa trágica noite. Somos, todos nós, espectros que nasceram nesse mundo assombrado. Não podemos olhar para trás. O medo nos paralisa. Derrubamos tudo o que é passado. Fazemos de novo. Negamos e interiorizamos. Neurotizamos e transformamos em sintoma. Fugimos da terapia.
Negando 1939, matamos 1900, 1870, todo o passado. A bela Europa se vai. Para não encarar o trauma, perversamente, matamos tudo de melhor também. Austerlitz esqueceu ser judeu. Esqueceu ter nascido em Praga. Esqueceu seu pai verdadeiro. Austerlitz anda de mochila, sem rumo, mundo afora. Nada constrói, nada deixará, seus passos não se gravam no solo. Austerlitz ao não rememorar deixa de existir. A Europa é uma sombra. E nós, ocidentais, nos guiamos por fumaça. Tudo que nos encanta é ilusão. Nossos passos não ecoam. Ninguém lembrará desta geração. Nossa época será vergonha do futuro. Treva medieval. Sebald descreve a arquitetura européia com detalhes que nos fazem tremer. Seu olhar pode dissecar tudo. O amor nesse mundo é apenas um consolo. Tornou-se um ambulatório. Amamos para esquecer quem somos. Tudo neste mundo é esquecimento. O amor que foi fonte de coragem tornou-se usina de covardia. Quem ama deseja nada sentir. Viver no colinho quente. Entregar sua vida a outro. Deixar de ser.
Sebald morreu em 2001, acidente de carro. Um homem com tal mente ter encontrado a morte na estrada é de uma assustadora coerência. Foi um quase-gênio. Num mundo que detesta toda originalidade ser um quase é o máximo a que se pode chegar. O futuro esquecerá nossa medíocre arquitetura, nossa futil música e nossos livros umbigos. Mas se lembrará de Sebald e deste livro. Seu nome sobreviverá.