Foi aos 14 anos, numa madrugada, que lí este conto pela primeira vez. Termino hoje, tanto tempo depois, de o reler pela terceira vez. E continuo sentindo um prazer imenso em reencontrar Candido, Pangloss, Martinho, Cunegundes, Paquette e tanta gente mais. Ao contrário de livros que nos decepcionam numa segunda leitura, Candido permanece com o mesmo brilho, o mesmo encanto, dando tanto para quem o encontra.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...
Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.