BRAZILYA, ALEMANHA E A RAZÃO

Lendo um livro de Peter Gay sobre Mozart ( Peter é o cara que escreveu a melhor bio sobre Freud. ), descubro que a Alemanha que conhecemos não é a Alemanha de verdade. É virtual. Até o fim do século XIX, Alemão eram os habitantes de lugares como Munique e Frankfurt, e que Praga e Viena eram parte desse germanismo. Ser desse mundo era ser parte da terra do romantismo, da filosofia e da música. O caráter alemão era aquilo que hoje entendemos como grego-clássico, uma incessante busca por beleza e por conhecimento. Era um mundo de muito otimismo, de alegria exaltada e de romance. Cafés, cervejarias, montanhas, rios azuis, bailes e poemas. Esse universo é que nos deu Goethe, Bach, Beethoven, Mozart, Schiller, Kant, Novalis e Wagner. Quando surgem Freud, Nietzsche e Rilke esse país já está agonizante. Como ?
A unificação da Alemanha, a união da Baviera, da Saxônia, de Weimar e de todos os seus estados foi feita sob a liderança de Bismarck e com dinheiro da indústria pesada. A Alemanha nasce para ser líder, nasce em modelo Prussiano, e a Prussia, estado de competição, de disciplina, estado militar, sufoca e mata as outras Alemanhas, nações que nós jamais conhecemos. ( E sob sua influência a alegre Viena e a sensual Praga se afogaram em burocracia e preconceito. ) O estado Prussiano só poderia desembocar em duas guerras e numa esquizofrênica divisão.
Falo isso para dizer que Brasília é a Prússia do Brasil. Nestes dias de Sarney e Renan, Lula e Collor, vejo na tv aquele corredor que percorre o congresso nacional. É um túnel arredondado, feio, labiríntico, Stalinista. Lembra um bunker, um metrô, um esconderijo anti-povo. Herr Niemeyer criou uma pequena Prussia árida, onde todo seu concreto lembra opressão, retidão de uma marcha rumo ao futuro, a um futuro prussiano. Nada em Brasilya lembra o Brasil. Nada de carioca, de baiano, de mineiro ou de bandeirante. Nada. Brazilya tem a retidão da ordem unida, do uniforme, do inumano, do nada absoluto. E o país, pobre Weimar, se entristece nesse bunker subterrâneo. O Brasil morreu. Hoje é Brazilya.
Gosto de me dizer iluminista. E sou. Foram eles que me forjaram. Mas ao matarem a ingenuidade da religião e colocarem a razão em seu lugar, jamais imaginaram que a razão se mostrasse tão incompetente para dar ao homem aquilo que a religião sempre deu : paz.
Acreditaram na ciência e apesar de se chamarem pessimistas em tudo, foram de cego otimismo em sua fé científica. Pensaram que a razão fosse naturalmente justa, pacífica e democrática. A Alemanha é o estado da razão. Brazilya é uma cidade construida racionalmente. Ela nada tem de barroca, romantica ou rococó. Assim como a Alemanha matou a romantica Munique e a gótica Mannheim.
Hoje sabemos que o desencanto da razão começa com a crueldade da revolução industrial, passa pela primeira guerra com seus aviões e bombas científicas ( e gases tóxicos ) e deságua nos campos de concentração onde se matava racionalmente e se planejava um mundo de super-homens forjados por ciência e filosofia. O auge da criação científica ainda é a bomba atômica. Como confiar na ciência ?
Você consegue, com sinceridade, me dizer que confia na engenharia genética ? Será que não veremos a extinção de seres humanos indesejados ? O fim de pessoas com " defeito " e portanto, o fim da diversidade ? Quem definirá o que é normal, saudável, padrão ? Realmente vale a pena não ter mais nada de natural em troca de brinquedinhos eletrônicos e maquininhas engraçadinhas ? Vencemos a varíola. Adquirimos medo como nunca houve, e doses cavalares de tédio. Valeu a pena transformar todo campo em caminho asfaltado e toda cidade em estacionamento ? O que lhe é mais agradável : o berço onde você abriu os olhos, com suas cores e tecidos macios, ou o moderno prédio da nova estação do metrô, com seu prussiano concreto e o árido frio de toda estação ?
Nós vimos a mais racional forma de administrar uma nação ruir ( o comunismo ). E assistimos coisas anti-racionais como terrorismo, racismo e vicios vicejarem. Porque ? Onde aconteceu o erro ? O iluminismo nos livrou da inquisição, da bruxaria e do charlatanismo, mas abriu caminho para o medo, o tédio e o absurdo. Pois o mundo, basta saber algo de história para perceber, nunca esteve tão apavorado ( daí o consumismo, as distrações, os desesperos ), tão entediado ( voce adquire hoje aquilo que amanhã não te interessa mais ) e tão confuso ( você faz um imenso esforço para não pensar, não sentir e ser sempre jovem. Pra quê ? ). Assustado por saber, pela primeira vez, que toda pergunta respondida traz mais duas sem resposta; entediado por já ter visto tudo na tela da tv aos 11 anos de idade, por se tornar competitivo aos 7 e começar a temer o tempo aos 13. Entediado por não encontrar mistério em nada, pois tudo foi dissecado pelo cientista, por não conseguir criar nada de seu, pois tudo que seria seu tem um preço, e entediado por ver tudo numa vitrine e imaginar que nada mais existe fora dessa vitrine. Confuso por não enxergar a armadilha. Condicionado a não perceber mais as grades que o cercam. Amando o zoo onde foi posto. Pensando que viver é comer e ter , e que o mundo e a história se restringem a sua jaula e seu pátio de exercícios.
Sabemos que a razão errou. Que este computador onde escrevo é quase nada. Que meu celular não me fez melhor ou mais feliz. Que o novo Mercedez me dará a satisfação de ter um novo Mercedez, e que todas as outras insatisfações continuarão insatisfeitas. Que todo desenvolvimento científico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano. Que continuamos matando, roubando, mentindo, destruindo, e pior, nos iludindo. Mais que antes. E que ainda tememos a morte, o tempo e a solidão.
Mas o irônico é que somos a razão. Não podemos mais ser de outro modo. Indagaremos sempre, desejaremos sempre, estaremos insatisfeitos eternamente. Ingenuidade só se perde uma vez, e quando a perdemos, definitivamente em 1945, nos jogamos à ciência, único consolo ainda possível. Sem perceber que o defloramento de 1945 fora causado pela própria ciência.
Jamais voltaremos a valsar em Viena. A cidade é hoje antro de racismo hipócrita. Jamais teremos uma capital entre sambistas e igrejas barrocas. O Rio se tornou capital da futilidade hedonista. Jamais escutaremos Beethoven como nosso igual. O mestre era um homem natural, hoje eu sou um pré-coisa. Oh ! Admirável mundo novo onde tudo é possível e nada nos faz satisfeitos! Onde tudo acontece e nada nos importa ! Onde todos são alegres e ninguém conhece a felicidade ! Enjoy it !