Mesmo os críticos que não morrem de amores por Updike, reconhecem a sua maestria como crítico e resenhista. Neste livro lemos o lado comentarista de cultura do autor americano. E ele se mostra ao nível de Wilson, Vidal e Tynan.
Primeiro uma observação : é surpreendente a maneira como, de acordo com o amadurecimento, mudamos a maneira de olhar a arte. Enquanto somos muito verdes, tudo o que procuramos em um livro ou filme é emoção. Sómente o ultra-aparente nos toca. Queremos criatividade pura e fogos de artifício da emotividade. Com a experiência notamos que é relativamente fácil ser "brilhante". Passamos a procurar algo além do brilho : estilo. A habilidade de se fazer bem passa a ser valorizada. Passamos a entender as dificuldades de se saber, de se dominar uma linguagem, a originalidade sutil dos mestres.
Updike nunca posssuiu o choque vulgar de Mailer ou Capote, e nunca foi modernista como Faulkner ou Dos Passos. Seu modelo é o da escrita perfeita, do saber fazer, da clareza objetiva.
Neste volume ele dá uma aula de observação, percepção e belo estilo. Updike nota o objetivo do autor por detrás do aparente, mostra suas falhas e aponta sua originalidade ( quando ela existe ).
Seu primeiro texto é uma bem-humorada queixa sobre o excesso de reverência da crítica americana em relação a Henry James. Ele concorda que James é um mestre, mas nos faz rir com os ridículos de idolatria de publicações sobre literatura que tratam tudo o que James escreveu ou falou como mensagens de um deus americano.
Em seguida vêm três textos de gênio. Os três fundadores da alma artística americana : Hawthorne, Melville e Whitman. Todos devedores de Emerson ( ele cita um texto de Emerson, adorado por Whitman, que é ponto de partida de tudo aquilo que Walt escreveu. ) De uma forma clara e cheia de leveza, John faz com que vejamos nos três o nascimento de tudo aquilo que fez a grandeza da América, e consequentemente, do século XX. O texto sobre Melville é antológico. Ele segue, obra a obra, tudo aquilo que Herman fez e viveu, toda sua estranheza arredia, exibindo esse caráter único dos EUA : uma nação profundamente religiosa e ao mesmo tempo, completamente materialista.
Vem então um emocionante comentário sobre James Joyce. O irlandês é visto como símbolo do autor comprometido com sua auto-satisfação, um exemplo de opção por sua fé em sí- mesmo, de integridade contra pressões externas. Fantástica a citação do único encontro de Joyce e Proust, encontro com testemunhas. Foi num chá. Joyce disse a Marcel : " Meu estômago ainda me mata! E estou quase cego ! Se minha cabeça parasse de doer !" E o francês replicou : " Meu fígado é minha cruz! E meus pulmões não suportam este ar empestiado ! " Os dois maiores gênios dos últimos cem anos, passaram seu único encontro falando de doenças !
Páginas sobre Heminguay e Edmund Wilson falam da crueldade pseudo-viril de Ernest, e da obsessão por sexo do grande crítico de esquerda americano. Muito melhor é a explanação sobre as cartas trocadas entre Wilson e Vladimir Nabokov. O russo, exilado pela revolução, se torna mestre do idioma inglês, humorista satírico, fino e ousado, e cultor de um aristocracismo muito snob. Updike toma o partido de Vladimir, colocando seu talento nas alturas e vendo em Wilson um certo egoismo e egocentrismo exagerados.
Uma crítica sobre um livro de John Cheever. Updike escreve o que penso : de 1960 para cá, Cheever ocupa um posto central. Mestre de criatividade original, cômico delicioso, estilista objetivo e surpreendente.
Como bela é sua apreciação de Beckett, visto como o criador do romance atual : aquele em que o único personagem é o autor. O romance da mente de quem escreve. Junto a esse escrito, vem outro grande autor da Irlanda : Flann O'Brien. De certo modo o oposto de Beckett. Flann permaneceu na velha terra verde, não emigrou, criou montes de personagens e manteve viva a tradição do nonsense irlandês. ( Nonsense que abunda em Beckett- que Updike adora, e Joyce ).
Celine e Gunter Grass são criticados. Os dois são mostrados como donos de personalidades ruins, de intenções dúbias e de um talento mal usado.
Mais positivo é o texto sobre Milan Kundera. Eu não sabia que Kundera fora professor de cinema em Praga e que Milos Forman fora seu aluno. Updike aponta como o sexo em Kundera é triste e o fato de Kundera ter apontado o fastio pelo corpo feminino, decorrente do excesso de exposição. Frase de Kundera : " A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. "
Wallace Stevens. Melhor poeta americano desde Eliot. Updike reafirma isso, como Bloom não se cansa de dizer. Eu lí Stevens anos atrás. Se ele não me pega como Eliot é porque Stevens é mais discreto, sutil, engenhoso. Eliot te toca de primeira. A vida de Wallace foi fantástica. Família classe média do leste americano, tornou-se bem sucedido advogado. Escrevia nas horas vagas, muito, e teve uma vida familiar padrão. Elegante, bem apessoado, seus versos são musicais, brilhantes, simbólicos, cristalinos. " A realidade é um vazio. A verdade não importa." " Numa era de descrença, é o poeta quem nos recorda as satisfações da crença. No estilo." " Quando trocamos um prazer inferior por um superior, elevamos os homens na escala da existência." "O amor ao belo exclui o mal. A única fonte de transcendencia na vida é ser decente na vida privada." São frases de cartas de Stevens. Será que os autores ainda escrevem cartas ?
Outro grande poeta é Auden. Mas ao contrário do americano, este inglês foi muito famoso ainda vivo e decaiu em popularidade após sua morte. Updike mostra o lado infantil de Auden, um jeito de criança protegida, mimada, que ele sempre exibiu. Uma personalidade inescrutável.
Levi-Strauss. John Updike mostra o brilho de certas frases do famosíssimo antropólogo francês ( a melhor : "O homem civilizado é limpo, mas nesse estar limpo ele suja a natureza. O primitivo é sujo, mas tudo ao seu redor é imaculado. ) Quando mostra seu lado mais "viajante", Strauss exagera em seu deslumbre com o próprio intelecto, e chuta interpretações sobre a sociedade dos índios da América que são totalmente arbitrárias. Jamais saberemos o que uma lenda significava para um cheyenne do século xv. Sabemos o que significa para nós.
Borges. Updike glorifica a criatividade aterradora do argentino. Criatividade que é sempre baseada na lógica pura, na clareza, no saber escrever. Updike cita os autores que Borges amava: Orwell, Stevenson e Lewis Carroll. A forma como Borges depurava seu texto, até transformá-lo numa pequena jóia.
E por fim, um escrito sobre cinema. John Updike fala da maravilha que são os atores que nos fazem ser felizes por podermos os olhar. Atores que passam em seu gestual o prazer de viver, a alegria. Ele cita Erroll Flynn como o ícone desse tipo de astro ( eu penso o mesmo. ) e escreve sobre Doris Day, a atriz que personifica o sol e o sorriso feliz. É um texto afetivo, biográfico, e brilhante. John nos recorda que no cinema o que permanece é o ator que ao fazer um papel ( bem feito sempre ) consegue continuar sendo ele mesmo todo o tempo. Não é o canastrão, pois esse é menos que sí-próprio, é o ator que irradia uma personalidade tão fascinante que nos pegamos interessados no filme e nele mesmo, em seus gestos e sua voz. Quando esse carisma se une ao calor da felicidade, está feito o mito. Uma imagem na tela que nos faz o bem, todo o tempo e sem o saber. Doris tinha isso. Flynn tinha isso. ( E eu diria que Cary Grant era uma fonte inesgotável disso. )
Que pena que este livro tão prazeroso tenha acabado !!!!! Fica um sabor de quero muito mais ! John Updike é viciante.