A ARCA RUSSA- ALEXANDER SOKUROV

Impressionante. Este filme com nenhum outro se parece. Consegue um milagre feito de técnica e de inspiração : ter quase duas horas de duração e não precisar de um só corte !
Sim, o filme é feito em uma única tomada ! A câmera é ligada e tudo é filmado em tempo real e contínuo. Todos os atores têm de estar no lugar certo, tudo deve funcionar ou todo o trabalho se perderá. Mas, o que faz o encanto deste lindo filme, é que isso, que poderia ser mero exibicionismo, existe em função da filosofia da obra : ao falar sobre St. Petersburgo e sobre o apogeu da história russa e européia, o filme precisa deslizar, como se fosse música, como se pudesse valsar.
A câmera são os olhos de alguém de 1992. Ele acorda ou morre e vaga por corredores. Não sabe onde está. Pessoas fantasiadas passam por ele e um francês da era Napoleônica lhe serve de guia. Os dois conversam e passeiam pelo museu Hermitage, em Petersburgo. Nesse passeio, vemos os salões do museu, suas obras-primas e personagens da história russa, que passam por nós como fantasmas. O russo, desperto da vida, ou desperto de um pesadelo ? Segue o francês, racionalista snob, que comenta sobre os altos brilhos da europa e os brilhos, poucos, da vida russa. E nós, sem perceber, vamos juntos, meio hipnotizados, meio fascinados, um pouco perdidos, um pouco assustados.
Se voce souber alguma coisa de história seu prazer será imenso. Se nada souber, sua fascinação será garantida pelo clima onírico do filme e pela gigantesca beleza das imagens. Raras vezes um filme foi mais belo. E raras vezes foi mais melancólico. Explico.
Tudo aquilo que vemos, e mais que vemos testemunhamos, é o apogeu irrecuperável de um tipo de civilização. A era da aristocracia. Um mundo em que tudo era dirigido para o que fosse elegante- racional- equilibrado. É o apogeu e o fim de um mundo dirigido para o melhor e não para o senso comum. O que define essa civilização é o excepcional, jamais o geral. A revolução francesa matou esse mundo. Para sempre.
O filme mostra a corte de Catarina e de Pedro. A tentativa de Petersburgo em se tornar Paris. A arquitetura é desconcertante. Tanta beleza chega a alucinar. Nossa era de bancos e hotéis é uma favela de concreto e de vidro vulgar, se comparada a época do mármore, do cristal e da prata. O centro da cidade era a igreja e o palácio, hoje é a finança- impessoal como um banqueiro. Mas para Sokurov a coisa é pior. A beleza de Petersburgo é obscurecida não só pelo final da era aristocrática. Vem a guerra. As várias guerras, o milhão de mortos na segunda guerra ( meu Deus ! Um milhão de mortos em uma batalha !!!!! ). E vem a escuridão da ditadura bolchevique. Em que o passado é apagado ( me lembro da frase de Kundera : a memória é a luta contra a ditadura. O poder é esquecimento.... ). Petersburgo muda de nome, muda de espírito, é aviltada.
Em 1992, um russo desperta. Tenta unir o fio da história, recordar e refazer. Impossível. A Rússia é o que ?
Para mim, o filme chega a doer. Ele mostra o máximo de "eden", de paraíso, que consigo conceber. ( Como o final do 2001 de Kubrick ? ). O século XVIII é o auge da nossa jornada, o auge da filosofia, da música, da literatura, da pintura, do salto da ciência. Topo da polidez, do controle sobre a paixão, do riso, do flerte. Tem o negror da miséria também. Mas é aqui que o povo se ergue para subverter essa tirania. O século é o século da virada, do pleno poder e da completa decadência. O filme mostra isso em imagens sem cortes e nos dá, ao final, um baile que nos recorda "O Leopardo", a obra-prima de Visconti sobre a beleza profanada. Nesse baile, onde cada gesto e todo olhar é definição de filosofia, o europeu-cicerone se solta e se diverte. E percebemos, nós, seres da taba deste século desumano, que toda aquela rigidez formal; liberta, não oprime. Nos toques, passos e modos da mazurca, observamos a etiqueta do contato social, da união de casais, da genealogia do amor. Os modos são dados para que voce se guie por eles e seja livre em seus limites. O campo de ação é delimitado, mas o segredo lhe é revelado. Hoje somos livres. Sem uma estrada nos perdemos na falta de direção. Nossa dança entre sexos é feita de embriaguês e de zumbis pulando para o escuro. Voltamos a Neanderthal.
Quando o russo e o francês se separam ( quem seria ele ? Stendhal ? ). .. o russo diz : "- Adeus Europa ! " Essa frase toca nossa medula. Porque ? Ora, falemos a verdade, fazem sessenta anos que a Europa respira por aparelhos. Sua morte começa com a primeira guerra e é total após 1939. Tudo o que ela nos tem a oferecer é passado. Restos de gênios mortos, ruínas de São Petersburgo, testemunhos de nobres europeus extintos. A Europa vive de fútil lembranças de luxos superficiais que envergonhariam o verdadeiro europeu : aquele que criou o que entendemos por civilização.
Este filme é inesgotável.