a vida privada

Ando relendo o monumento de Dubuy sobre a vida privada.
Uma casa antiga. Qualquer uma, em qualquer bairro. Observe suas janelas : elas se abrem quase que sobre a rua. Mais que arejar ou iluminar, sua função é a de trazer a rua para dentro da casa.
Compare agora uma feira livre a um supermercado ( ou o shopping com a loja de rua/ cinema de rua com cinema de complexo )- na rua, esses centros de compra ou lazer se misturam ao fluxo da vida- ruídos, gente que passa, dia e noite, chuva e sol.
Digamos agora que uma familia conversa numa sala. Então voce pega um livro e vai ler em seu quarto : eis o revolucionário inicio da individualização do homem- o livro ! Todos vêm voce se afastar e se isolar- o livro te isola. Sua intimidade aflora. Mas, mesmo com o livro, não foi sempre assim. No inicio era inadmissível que alguém lesse apenas para sí mesmo : lia-se em voz alta e para outros. Sempre.
Toda invenção nasce familiar/ social e se torna depois ferozmente individualizante. Recordo que toda tv era dos vizinhos e amigos - qual a graça de não a dividir ? Depois se tornou uma diversão apenas familiar, para então se tornar de cada membro ( até 1975 era muito estranho querer uma tv no quarto - pra que ? ).
Quando surgiram os jogos eletronicos sua maior graça era a de se exibir para os amigos, disputar quem seria o melhor, frequentar as casas de video-games. Hoje um garoto consegue se divertir em absoluta solidão ( o que seria aterrorizante para o cara de 13 anos que fui um dia ).
Converso toda madrugada com alguns amigos nesta tela- é interessante, mas sinto que minha solidão- após confidencias, frases e piadas- continua exatamente a mesma. Eu apenas olhei uma frase escrita numa tela e ví uma figurinha de tv se mover. Não houve toque, não houve calor, não existiu nenhum afeto real.
A história do homem caminha da absoluta falta de intimidade ( que vizinho vem pedir ovos ou açúcar hoje ? ) à total solidão. E mesmo em locais que garantiam alguma ação em grupo ( voce hoje faz ginática com um aparelho, não em grupo; anda de ônibus cercado de zumbis plugados em celulares e mps; não olha seu vizinho de restaurante ) a abertura ao acaso se torna cada vez menor.
Se pensarmos que as casas da idade média não tinham trincos e que no Rio de 1930 a grande diversão era ir conversar na rua, vemos que estamos num acelerado processo de enclausuramento físico. A ilusão de se estar ligado ao mundo via internet é apenas um narcótico, que unido a prozacs e extasys dá uma falsa sensação de se viver.