RAGA, LIVRO DE J.M.G. LE CLÉZIO

Primeiro ele narra uma viagem. Uma familia de ilhéus numa das maiores aventuras da saga humana: piroga no oceano, perdida, indo de ilha a ilha. E a nova terra, a praia.
O livro, curto, eu o li em uma manhã de frio, é delicioso. Deliciosamente interessante, porém é de dor que ele fala. Crimes cometidos pela Europa sobre a Oceania. Hediondos.
Mas antes Le Clézio anda pela ilha. E percebe a angústia sempre presente nessas ilhas que turistas tolos chamam de "paradisíacas". Nunca foram um paraíso. Nunca. A história desses mundos é de fugas: fugir da fome, fugir dos vulcões, fugir dos inimigos. Se aventurar ao mar, descobrir nova ilha. E depois a maior da dores, a chegada de navios brancos, a captura de seus filhos, de suas mulheres, a escravidão. Le Clézio anda pela ilha com uma missionária católica, e vê nela a primeira pista de um novo mundo num novo século... Qual mundo?
Antes do novo ele narra as lendas. A fertilização do mundo, a sexualização da vida. Lendas que são surpreendentes. Terra que nunca foi de ninguém, ilhéus que sempre viram a terra como dona da vida, o homem como companheiro da terra, parte dela e não seu dono. Mas a vela branca do navio europeu é vista ao largo, e a fuga se faz. Para dentro da mata. Os europeus tomam posse da terra, dos corpos e dos deuses, é a chegada do eu.
Homens que se jogam fazendo "o gol " ( o nome é esse, nós o chamamos de bugee jump ), mulheres que trançam esteiras. Pássaros que anunciam a vida. Estrelas. E o mar, sempre o mar.
Mas agora é hoje e Le Clézio sempre narra de hoje, não se perde no passado. E constata o futuro das ilhas, o futuro da Terra, deste planeta. Um novo cristianismo mestiço, uma nova forma de ver a vida.
E é pela língua que a coisa se anuncia ( meu professor de linguística adoraria este livro ). Línguas miscigenadas, criolas, que são não um erro mas sim uma vingança. Línguas como o foram um dia o francês e o português, línguas que eram reações de tribos contra o opressor romano ( o latim culto ). O final do livro é uma antecipação desse futuro: eles são hoje a vitalidade que fomos um dia. Eles têm a curiosidade de quem é novo. Tudo querem ver, tudo provam, e principalmente, tudo misturam. Misturam músicas, adicionam temperos, fazem uma sopa de línguas. O futuro é mestiço ( sempre foi ). Porque o francês é um mestiço ( de romanos, celtas, normandos, bretões ), o português é um mestiço ( de romanos, íberos, celtas, suevos e árabes ), mas são mestiços já esquecidos de suas origens, o sangue impuro acomodado em não-memória, em não-sonho. Mas nas ilhas, na Oceania, como no Caribe e como na África, a mestiçagem é viva, é agora, nasce. E eles se espalham pelo mundo, porque têm viva na mente a dor da opressão, porque têm a violência na alma, porque precisam vingar a injustiça.
Sim, há uma violência latente nesses lugares. Que é uma reação e nunca uma ação. Seus avôs foram massacrados, raptados, estuprados, sua cultura foi apagada, seus deuses ofendidos, sua cara foi amordaçada. Nunca houve dor maior no mundo. Não foi a dor ( terrível ) da guerra, pior, foi a dor da aniquilação. Exemplo: em 1910 na África do Sul ainda se organizavam expedições de caça ao negro. Na Austrália, de caça ao aborígene. Forma européia de vencer o tédio...
A reação violenta está na língua, cheia de termos crús, estúpidos, agressivos. A reação está no modo como eles viajam, viajam com o intuito de voltar, de explorar o explorador. Eles foram dizimados, são violentos e resistentes. Pois seus deuses voltam e o que desejam é lembrar.
Mestiços, povos que amam provar tudo e que assim amam a tecnologia, as novidades, a moda, mas que ao mesmo tempo impregnam tudo de deuses, de manhas, de ritos e de mistérios. Lêem as linhas do tempo. Resistem.
Franceses e portugueses foram massacrados um dia. Foram escravos e perderam sua religião, sua terra. Mas não souberam resistir, se renderam. Essa dor nos foi roubada. Mas não eles, sua dor é deles, é mantida e é celebrada. Identidade.
O futuro de toda nação passa pelo saber ser mestiça. Os aborígenes, ( assim como os negros e os outros povos misturados ), quem diria, são o futuro da vida. Se eles deixarem de resistir estaremos mortos.
Pequeno grande livro.