ATRAVÉS DE UM ESPELHO - BERGMAN E SEU DEMÔNIO

Filme de 1961. Temos Harriet Andersson. Que não é mais a menina de Monika e o Desejo. E nem mais o monstro sensual dos anos 50. Aqui ela consegue parecer pesada, densa, terrivelmente grave. O resto do elenco tem Max Von Sydow, como um frio e ao mesmo tempo perdido professor. Gunnar Bjorstrand é o pai, e o filme é dele. Há ainda Lars Passgard, ator que não se firmou na trupe de Bergman, como o irmão de Harriet. Gunnar esteve em quase todos os filmes dos anos 50 do diretor sueco. Este filme, que começa com cello de Bach e imagens de um mar cinzento em uma ilha vazia, fala de loucura. ----------------- Desde a algum tempo nos acostumamos a ver artistas ateus ignorarem Deus. Infantis, eles negam sua existência como ideia central da nossa civilização. Crianças negam aquilo que não entendem. Acreditam que fechando os olhos para uma coisa, ela deixa de existir. Por isso estranhamos que um ateu como Bergman se ocupe tanto com Deus. Ele não crê, mas não nega sua importância. Ele, adulto que é, O discute. ------------------- Harriet acabou de sair de uma clínica. E volta a enlouquecer. Vemos momento a momento sua agonia. E ao mesmo tempo, a reação da família. O marido que tenta manter a cabeça no lugar. O pai que covardemente se afasta. E o irmão, que afunda no sofrimento do amor pela irmã. Em um quarto abandonado, ela começa a ter contato com alguma coisa. Algo que vive por detrás das paredes. ( Fosse um filme de 2021, essa entidade seria um ser de outra dimensão. Nós substituimos Deus por um ET. Tudo para parecer mais cinetífico ). Ao fim do filme ela vê essa entidade e enlouquece. Um helicóptero vem a levar embora. ---------------- Uma aranha. Deus é como uma aranha. O rosto impassível. Os olhos frios e impessoais. A vida é sua teia. Somos aqueles que cairam nela. Horror absoluto. ---------------- O filme está longe de ser perfeito. Há algumas cenas que soam artificiais, forçadas. Mas é uma obra prima. A cena dentro do barco, a barriga da Baleia de Jonas, é uma das coisas mais belas e fortes já filmadas. O desamparo de quem viu Deus. E encontrou Nele nada do que esperava. --------------- Após a partida da filha, o pai e o filho conversam junto a uma janela. Afinal, Deus existe? O pai, numa fala artificial, porém de beleza sublime, diz que o amor que sentimos é uma manifestação da existência de Deus. Que o amor é Deus afinal. O pai parte e o filho, sozinho, diz: EU FALEI COM MEU PAI. Para quem como eu, viveu uma relação de amor profundo e odio ferino com seu pai, essa é uma das mais comoventes falas de toda a história do cinema. Bergman criou todo o filme para essa fala final. A obra se trata disso: dois filhos a procura do pai que sempre se faz ausente. -------------- Desde Freud o valor da mãe tem sido hiper valorizado e nesse processo, o pai foi posto de lado. Se tornou um tipo de ator coadjuvante, um São José apagado diante de Maria. Mas, pelo menos para os meninos, a relação pai e filho é crucial para qualquer chance de alegria e saúde mental. A tragédia de nosso tempo é a ausência do pai, seja ele Deus, pai biológico ou avô. O guia, o protetor, o heroi, o aglutinador. E também o rival declarado, o excitador de vontades, o ponto a ser superado. Sem o pai há um vacuo, vazio a ser preenchido por qualquer coisa. Inclusive uma aranha. ------------------ Só alguém que chegou perto da loucura escreve algo assim. Minha teoria boba de que Bergman nunca sofreu como sua arte nos faz crer, cai por terra. Sim, ele esteve perto da aranha horror. E saiu para nos dizer que FALOU COM SEU PAI. Abraço meu travesseiro e choro sem pudor algum. Nobreza nada mais é que dizer, sozinho e sem testemunhas, perdão meu pai. Onde voce está? Que falta voce me faz. Salve-me. Salve-me. Salve-me. Este filme é uma missa solene. Por isso Bach. Harriet é o médium e seu irmão, um anjo. O marido é um homem comum. E o pai...ah o pai....é o deus que foge, que nos escapa, que se vai. Se isto não é uma obra prima elas não existem.