SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR - BERGMAN E O MUNDO DO NORTE
O mundo do norte da Europa é o mundo luterano. Mesmo que um país como a Suécia tenha maioria atéia a décadas, sua herança cultural e seu ambiente espacial é luterano. Faz parte de seu caráter. ------------ Luteranos, predominantes em parte da Alemanha também, amam o trabalho e com o trabalho, a limpeza. Para eles, a sujeira, a desordem, o acaso são partes do mundo do mal. Provável que essa concepção venha como oposto ao catolicismo. Para luteranos, católicos eram e são sujos, desleixados, preguiçosos, não confiáveis. Suas igrejas, as romanas, são de mal gosto com seu exagero de imagens, cores, corpos nús, padres suspeitos, sexo mal dissimulado. Não me interesso aqui no porque disso, mas sim no efeito que os filmes de Bergman, que adoro, têm sobre mim. Eles são profundamente luteranos. E é esse caráter, tão fantástico, tão distante, tão pouco cotidiano para mim, que me fascinam em seus filmes. ------------- Observe este filme citado no título. Trata de uma família rica da Suécia de fins do século XIX. É o mesmo mundo de filmes como My Fair Lady ou dos filmes de Ophuls. Mas mesmo os ingleses sendo protestantes, eles jamais chegam perto da arrumação fria, da limpeza esmerada que vemos nos filmes de Bergman. A religião inglesa nada mais é que um acordo. Luteranos são radicais. Odeiam acordos. ------------- O filme, alegre, trata de sexo. Mas não há o espírito dos filmes franceses ou italianos. E nem o sexo nada sensual dos americanos ( não há país menos sexy que os USA ). Observe como são as cenas de desejo, as cenas na cama, os beijos. Observe as casas, as ruas, o teatro. Tudo limpo, claro, arrumado, sem nada em excesso, tudo posto em seu lugar, nada dos adereços da Londres de 1890, nada do pó e do mofo italiano, nada da bagunça opulenta de Paris. Tudo parece rico, porém simples, chique, mas envergonhado. Esse ambiente, tão anti-Visconti, tão anti Ophuls, é o que explica meu amor aos filmes de Bergman. ---------------------- Ingmar Bergman deprime muita gente, não a mim. E não é porque sou deprimido e portanto imune. O fato é que vejo em seus filmes a paz que não vejo em outros diretores. Por mais deseperado ou niilista que uma cena seja, há paz no cenário, na luz, na condução dos atores, no roteiro seco e sem firulas. Bergman é assim, o mais sereno dos diretores e portanto um nobre. Se Kurosawa também é nobre, ele é, sua nobreza é a dos samurais. Kurosawa é exagerado, ríspido, histérico e sempre maravilhosamente belo. Bergman nunca atinge a beleza de Kurosawa, mas é mais sereno. ---------------- Isso é estranho porque eu sei que Bergman era um homem muito mais imaturo que Kurosawa. O japonês tinha uma sabedoria muito maior. Então entrego o caráter sereno dos filmes de Bergman não a uma sabedoria particular, mas ao luteranismo rigoroso do ambiente onde ele nasceu e cresceu. Os copos e os pisos brilham nos filmes de Bergman. E as atrizes, elas são sempre lindas. ---------------- Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson e Harriet Andersson. Todas são maravilhosas e atemporais. Harriet se destaca. É a empregada da casa, livre sexualmente, ousada, sem pudor, feliz. Sem tirar a roupa ela exala sexo. Vi vários filmes com Harriet, ela era um fenômeno. Nunca vi atriz com tanto poder volátil. ------------------- Amamos as pessoas que Bergman cria. Talvez porque ele as ame. O homem maduro que não consegue fazer amor com a muito jovem segunda esposa. O filho que teme o sexo e quer ser pastor. A jovem esposa entediada. A empregada sexy. A atriz que começa a ficar velha. O soldado de opereta. Todos são felizes de certo modo, e de outra maneira, estão condenados. Bergman não evita ser Bergman e em certas falas sentimos o drama pesado quase dar suas caras à cena. Mas não. O filme é feliz. ----------------- Não há mais diretores como Bergman porque mesmo em seu tempo, anos em que o cinema viveu seu apogeu como forma de arte, ele era único. Falava-se então em Visconti-Fellini-De Sica-Antonioni, Godard-Truffaut-Chabrol-Malle ou mesmo Kurosawa-Ozu-Mizoguchi-Naruse. Mas Bergman era apenas Bergman. Seu estilo era só dele, sem escola e sem descendentes. Ele amava filmes. Os que fazia e uns poucos que via. Amava as mulheres, muitas. E a música, Mozart sobre todos. E acima de tudo, amava atores. Cada fotograma de cada filme é pintado com esse amor pelo rosto de seus atores. Por isso todos eles parecem tão lindos, tão especiais, tão incríveis e eternos. ------------ Fellini tinha o mesmo amor, mas era um amor católico, ou seja, exagerado, burlesco, maneirista, barroco. O amor de Bergman é exato. Fellini era operático. Bergman filosófico. É isso.