REVOLVENDO UMA LEMBRANÇA DE FUTURO

1979 foi um ano muito frio. Eu vestia um paletó de couro preto e meu cabelo estava sempre sujo. Tinha 17 anos e ia ver filmes pornô aos domingos. Minha vida era feita de rock, masturbação e livros do século XIX. Eu sofri pra caramba nesse ano e por isso ele foi o ano mais importante da minha vida. Ou não. --------------- Estudava numa escola que odiava, o Mackenzie e em um ano inteiro fiz apenas 3 amigos lá. Leandro Cunha Bastos, um morador de Higienópolis gay, chique e esnobe como só nos anos 70 se podia ser. Ele sentava na minha frente e se virava toda hora para fazermos fofocas. Outro amigo era Osvaldo, filho de um professor da USP, comunista claro. Era um chato, mas gostava de mim. Comunas naquela época eram sérios e ele sabia russo. O terceiro amigo era Paulo Cãndido, um cabeludo culto que adorava cinema. Ele até sabia quem era Miou-Miou e Bulle Ogier. -------------------- Comprar discos era dos poucos prazeres que eu tinha e em abril eu comprei uma dupla de LPs Stones + Beatles. Se em 1977 eu havia comprado Abbey Road e Let It Bleed, e isso fora uma felicidade, escutava Let It Bleed após Abbey Road por meses, em 1979 eu comprei Revolver e Their Satanic Majesties Request juntos. E isso fora um drama. Por semanas eu chegava em casa às 13-45hs e ouvia Revolver e Satanic em seguida. Isso mudou muito minha percepção da vida. Se aprofundou. E ficou mais confusa, bem mais confusa. ------------------ Revolver é, talvez, o maior disco da história do rock. São poucos os discos que podem lhe fazer frente. Seria tolice eu ficar aqui descrevendo um disco que todo mundo conhece e que eu escutei centenas de vezes. Então vou destacar um detalhe genial, um toque em cada canção que faz toda diferença. -------------- Abrir com George e não com John ou Paul é uma diferença. E o riff de timbre metálico nem parece Beatles. O que diferencia Taxman é a classe da gravadora EMI. Tarimbados em discos eruditos, a turma de George Martin dá uma sonoridade moderna, seca, dura à este rock. Taxman é uma obra prima, os backing vocals dos Beatles são sempre magníficos e perfeitos, e temos o melhor solo de guitarra do grupo. Então vem Eleanor Rigby e eu lembro bem de ouvir essa melodia severa, clássica, gelada quando era uma criança em 1967. Ouvir Eleanor Rigby pela primeira vez é sempre uma experiência importante. Um quarteto de cordas, sem bateria ou guitarra, num disco POP? O cello é sublime e severo, a melodia é inesgotável. É uma canção exata. Destaco todo contra ponto feito pelo cello e o modo como a palavra Lonely soa. Voce nunca mais ouviu Lonely dita assim. ------------------- She Said é típica de John, amarga e rocker. Para quem diz que Ringo não importava, a bateria soa muito original. Já Yellow Submarine, aparentemente boba, é sobre os hippies holandeses que viviam em barcos numa comunidade sem posses. Paul vivia pesquisando música de vanguarda, os sons de marujos é ideia dele. -------------------------- Dr Robert é deliciosa e é sobre drugs. Well well well.... esse refrão com orgão ao fundo dá a marca da coisa. O elan na voz de Paul, ao fundo, carrega a música para o alto. Love you too tem as cítaras de George em algo de soturno. ----------------- Good day é elegãncia total. O piano é lindo. Feliz. And Your Bird can Sing tem dos melhores vocais de John e um solo de guitarra bem californiano. Então vem For no One e como sempre a emoção cresce. Tivesse feito apenas essa canção na vida e Paul já teria lugar na história. A letra conta tudo o que voce lembra daquele dia maldito em que ela se foi. Paul pega detalhe por detalhe, o olho dela onde nada mais há. E a melodia....as notas parecem caminhar para o vazio, a canção é como se uma prece à beira do abismo, não há desespero, o que sentimos é a dor inevitável. Ela se vestiu para partir. Note o final da canção. UM grande compositor faria um belo refrão repetido ao infinito. Paul, gênio, termina deixando a linha melódica no ar, como inacabada. Imagino o que Brian Wilson sentiu ao ouvir isso..... I Want to tell you é um grude, voce não esquece essa melodia de George. É sua primeira obra prima. O piano dissonante dá algo de DESTINO à canção. Got to Get é Paul fazendo canção POP de adulto...aos 25 anos!!!!!!!!!!------------- E por fim Tomorrow never knows....eu, em 1979 mergulhava no caos e voltava da treva para botar o Satanic para rodar. Sim, eu ouvia o Satanic após Tomorrow never knows. Terminava esta canção, verdadeira oração psico, e começava SING THIS ALL TOGETHER....era ou não pra pirar?