ARTE HOJE

Não vá pensar que arte é como ciência. Se a produção científica avança, isso é inquestionável, a arte não. Medicina ou astronomia avançam e estão cada vez mais sofisticadas, corretas, exatas. Já na arte isso não se verifica e a ideia de progresso artístico não faz sentido. Ou melhor, ele existe, mas não atrelado ao tempo. Penso isso como produto da morte da cantora Astrud Gilberto, a mais chique cantora que o Brasil produziu em toda sua história. E a mais bonita também. Astrud, com sua voz afinada, suave, discreta, é o ponto máximo da linhagem de cantoras brasileiras. Ela pode ser igualada, jamais ultrapassada. Com Astrud, mandamos para os USA seu então marido, João Gilberto e ainda Tom Jobim, Eumir Deodato, Dom Um Romão, Laurindo de Oliveira, e mais um grande etc. Hoje mandamos, ou tentamos enviar aos USA gente como Anitta, Seu Jorge e Carlinhos Brown. Progresso? Onde ? ------------------- Por mais que eu ame a arte de Klee ou Kandinski, não se pode falar que eles são um avanço em relação à Rembrandt ou Caravaggio. Assim como a literatura de Stendhal ou de Sterne não é menos evoluída que a de Faulkner ou Nabokov. Se na ciência a história é uma escada, onde cada degrau significa um passo rumo ao alto, em arte a história é um caminho numa floresta, onde descemos e subimos, encontramos flores e trevas, e jamais temos como saber se aqui ou lá é mais "alto" ou "elevado" que onde estávamos ontem. --------------- Artes que dependem bastante da técnica, de meios científicos de apoio, tendem a enganar melhor. Um filme feito em 2000 terá, talvez, som e imagem melhores que aquele de 1930. Isso dará ao filme mais recente um brilho de papel de embrulho, uma face maquiada com mais apuro. Porém esse brilho não vem da arte, vem da ciência envolvida na produção industrial do filme. A arte do cinema vive no roteiro, na atuação dos atores, na edição, no modo como o diretor une todas as ideias, unifica o grupo numa coisa coesa. Isso independe da ciência ou tecnologia industrial do filme. Não há como dizer que o ganhador do Oscar de 2023 é mais evoluído que aquele que venceu em 1966. Ou 1945. O que se pode dizer é que o ganhador de 2017 é pior filme que o de 1951, ou que o vencedor de 1930 é bem pior que o de 1995. Não há uma linha que trace a evolução do cinema, mas há uma linha que traça a evolução, óbvia, da conservação de alimentos ou do tratamento da sifilis. Plebeus, gente que não pensa muito, tende a misturar tudo e ver em um disco ou livro de 2023 algo muito mais apurado e bem feito que um disco ou livro de 1960. ---------------------- Astrud e sua voz são pontos culminantes de um tipo de arte: a canção pop. Ela equivale à uma nave que voe à velocidade da luz ou a uma vacina contra o câncer. Um ponto evolutivo máximo. O que veio depois dela, Maria Bethania, Gal Costa, Rita Lee, Simone, são pontos mais baixos, involuções. História da arte não é uma estrada para cima, é um labirinto. Ninguém irá usar um remédio para infecção de 1950, assim como não se viaja mais com navios a vela. Mas a pessoa que exige o máximo e o melhor irá visitar uma capela italiana com afrescos de Giotto, mesmo eles tendo sido feitos a mais de 700 anos. Assim como eu prefiro um solo de guitarra de Jeff Beck à um de Satriani. Quando morre um grande artista sua arte morre com ele. Quando morre um grande cientista aquilo que ele fez é continuado por quem o estudou. É isso.