OS INGLESES SÃO POBRES E A MEMÓRIA NÃO MORRE
A geração inglesa que hoje tem entre 70-80 anos conheceu a fome em seus primeiros anos de vida. Eles têm memória da ração em lata ( spam ), do um ovo por semana, do leite em pó. Memórias felizes de quarteirões derrubados, espaços livres, vida na rua e centenas de milhares de crianças ( era o baby boom pós guerra ). Cresceram nas ruínas da guerra e jamais esquecem isso. Apaixonados pela comida farta da América, seus carros imensos, as casas grandes, a confiança na vida. O sol. Portanto, quando voce analisar um rock n roll star inglês dessa geração, tenha sempre isso em mente, ele foi pobre, muito pobre. E portanto, seu maior medo, eterno, é não só passar necessidade, como ver um dos seus em apuros. Eles festejam poder ter uma casa imensa, vários carros, mulheres ricas, joias e comida, muita comida. -------------- E apesar da boa educação da Inglaterra de então, são ex-suburbanos, ex-famintos, ex-moleques da rua. Para entender o que é sua história, tenha essa certeza: sua carreira é uma luta contra a carência. ---------------- Nenhum rock star inglês é realmente chique. Mesmo Bryan Ferry e David Bowie, os ícones do glamour, possuem uma breguice extrema. Ferry exagera tanto no chique, no ar de aristocrata, que trai sua insegurança. E Bowie sempre teve, principalmente em seus melhores momentos, algo do rapaz deslumbrado pela vida na cidade grande. Ele era exibicionista. Nada menos chique que isso. Isso que falo explica gente como Mick Jagger, que simplesmente não consegue parar de fazer dinheiro, que mesmo com tanto nos cofres ainda mantém um jeito brega de vestir e de ser. Não preciso falar de Elton John, Rod Stewart, Ozzy, Robert Plant, Ian Gillan e todo o resto. O próprio rock progressivo é uma tentativa de parecer culto e superior, atitude só prezada por quem se sente caipira e acossado por snobs. O rock inglês é filho de moleques famintos, crianças que ficaram ricas mais tarde. Nos EUA a história é completamente diferente. Toda esta minha conversa não faz sentido lá. -------------- O piano brega de Paul MacCartney, com um pano cheio de cores, é a lembrança do jovem faminto que ele foi. Assim como a carreira de Rod Stewart pós 1975, toda voltada para fazer dinheiro e ganhar mulheres. Mas não só eles. É brega Van Morrison com suas roupas ridículas, Pete Townshend e sua insegurança social, Ray Davies tentando parecer um dandy de 1910. Todos seguiram o mesmo caminho: um começo sincero e soberbo, confessional, ainda dentro do mundo duro e pobre da juventude inglesa de então, mas depois, quando a grana começa a chegar aos quilos e quilos, o desejo de não mais voltar a ser pobre toma conta e ser rico se torna mais importante que ser autêntico. -------------- Nada há aqui que os desabone. Eu sou como eles são. São humanos. Estão longe da estranha desumanidade mimada dos stars de 2021. -------------------- Há neles o orgulho de quem venceu. E isso é o mais importante. Em todos há o espírito do "VEJA MÃE! OLHA ONDE ESTOU!" Jeff Beck compra dúzias de carros antigos, aqueles que ele sonhava aos 12 anos e Jimmy Page mora em castelos, os que ele via no cinema e sonhava em morar. Não há muito espaço para compor um novo Immigrant Song quando seus dias são dedicados a usufruir seu novo status. ----------------- Rod Stewart foi um dos mais pobres, e por isso, seu deslumbre foi o maior. Quando se viu rico ele mergulhou na farra. O gênio, sim gênio, de seus primeiros discos morreu. Saiba que entre 1970-1974 era ele o artista mais nobre da ilha ( não, não era Bowie ). Pego aqui um CD do cara: GREAT ROCK CLASSICS OF OUR TIME. O Rod dos insuportáveis AMERICAN SONGBOOKS, caso voce não saiba ele vendeu toneladas da série de CDs que revivem as cançõea americanas clássicas, coisas que Sinatra e Fred Astaire cantavam. Esses Cds são de uma breguice soberba. Música para quem quer ser chique e não consegue ouvir os originais. Pois bem, aqui ele faz o mesmo com alguns rocks e pops. Um disco para vender mais alguns milhões. --------------------- Rod é o melhor cantor cover da história. Ao contrário de Bryan Ferry, outro cantor famoso por gravar covers, Rod não muda as canções radicalmente. Ferry as torna canções de Bryan Ferry, todas ficam parecendo composições dele mesmo. Rod não, ele canta dentro do formato imaginado pelo compositor. O diferencial é que ele canta sempre muito melhor que qualquer um. Por isso ele é o melhor intérprete de Bob Dylan da história. Ele dá à Dylan aquilo que Bob não tem: poder vocal para falar tudo que a canção pode dizer. IF NOT FOR YOU é o Dylan deste CD. Simples, alegre, confiante. Se com Dylan era ela uma linda canção, com Rod ela é perfeita. OH ROD!!!!! QUanta coisa maravilhosa voce não poderia ter feito!!!!! ---------------- O disco abre com Have you ever seen the rain, e não dá pra ser melhor que John Fogerty. Nem precisava ter gravado essa. Mas a gente sempre imaginou como seria Rod cantando Creedence, então okay. Depois vêm dois pontos baixos: Elvin Bishop e Chrissie Hynde. Fooled Around de Bishop é só uma cançãozinha boba, e I'll stand by you é daquelas coisas pavorosas que Chrissie fez depois que virou vegetariana e militante do bem. A Chrissie punk morreu em 1981. ------------------ Bob Seger é cantado com Still The Same, um linda canção e apesar de Bob ser um grande vocal, Rod a melhora. Profissional. Rod está ganhando dólares com dignidade. Mas às vezes não....cantar Its a Heartache, a horrenda música de Bonnie Tyler beira o apelativo. Rod canta uma peça de uma imitadora dele mesmo! Pra que? Por Caipirice.--------------- Day After Day é um dos amores da minha vida. Rod canta exatamente como na versão original. Não há um acorde diferente. A canção é uma obra prima, Rod a repete. Bem....em 1975 Rod Stewart nos deixou às lágrimas com uma versão mágica de First Cut is The Deepest, de Cat Stevens. Tantos anos depois ele revisita Stevens e canta Father and Son. Não é nem sobra do cantor de então, mas a composição de Cat é também menos genial. Então temos os Eagles e Best of My Love. Alguém disse que Rod canta com uma sedução maravilhosa, não houve cantor mais sedutor para as mulheres, sua voz as leva à cama. Aqui temos um cara que aos 70 anos ainda dá seus botes. E então vem If Not For You e a verdade se revela. É a única faixa onde Rod é ele mesmo. Um simples e ingênuo cantor. Vale todo o resto. ---------------- Não vou ouvir Love Hurts. Gram Parsons a gravou do modo perfeito e o Nazareth a destruiu para sempre. --------------- Na minha infância e adolescência, já disse isso, fomos educados a sofrer por amor. Os grandes sucessos, 80% deles, eram músicas feitas para chorar. Everything I Own é uma linda canção da mais chorosa das bandas, Bread. É uma canção tão linda que é impossível a estragar. Até Boy George ganhou dinheiro com ela. Rod nos dá um presente. ( Fico ainda mais tocado ao saber que a letra não é sobre uma mulher que deu tudo ao homem, é sobre o pai do autor, que havia morrido sem ver seu sucesso. David Gates, o compositor, agradece por tudo que o pai lhe deu ). Para fechar do CD, o óbvio: Van Morrison e mais uma de suas canções de motel. ----------------- A seleção diz muito sobre quem Rod é. Simples e direto. E fala mais sobre o que ele faz desde 1975: Produtos que vendem muito. Mas as faixas sobre Dylan, Bob Seger e o Bread mostram que ainda há um sopro de magia nele. E eu amo esse cara.