IGOR STRAVINSKI - A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA

Como pode esse russo ter criado isto? Essa foi a grande questão colocada na época de sua estreia, alguns anos antes da primeira guerra mundial. Stravinski surgia do nada e dava este tapa na cara do público culto de então. Era uma música barulhenta, selvagem, vazia de bons sentimentos. Houve vaias, houve aplausos, houve uma revolução. Escutada agora, mais de um século depois, como soa coisa na época tão moderna? -------------- Timbres. Eis o que mais ressalta hoje. Stravinski cria uma profusão sem fim de timbres insuspeitos. Nem o mais moderno synth tem tanta riqueza de timbres. Como eu poderia descrever? Há zurros, chiados, zumbidos, lixamentos, raios, ganidos, uivos, apitos, sirenes, buzinas, roncos, relinchos, grunhidos e mais, muito mais. Acordes irrompem e somem, voltam e revoltam. Chuvas de fogo, explosões de vazios, barulhentos silencios. Rajadas de percussão, muita percussão. Tensão que nunca alivia: é música tensa, nervosa, ansiosa, incômoda. Neurótica? Não, nada neurótica, antes natural. ----------------- Em Fantasia, os animadores da Disney imaginaram para esta música o nascimento da Terra. Sabemos que Stravinski se inspirou nos ritos pagãos da Russia. Penso, que como em toda obra prima, e ela é, cada um terá sua sensação íntima, muitas das quais incomunicáveis. Para mim ela assombra como uma música do mal, da maldade, do horror. E penso então que ela evoca algo de muito profundo e temido dentro de nós. Por mais que esse tipo de música tenha perdido sua força original em todas estas décadas, ela ainda tem a violência do que é reprimido. Sim, ela brota do inconsciente, o que faz nascer uma contradição, pois Stravinski era extremamente racional. ---------- Talvez por possuir tanta racionalidade seu inconscinete irrompeu como fogo e selvageria. Talvez por eu ser pessoa tão controlada ela me recorde nosso pânico primordial. --------- Não se engane. Assim como são os herbívoros hoje, no passado mais remoto nós vivíamos em constante tensão. Cercados de carnívoros, sem armas, nós éramos a presa. Cansávamos de ver, todo dia, nossos companheiros serem devorados em nossa frente. Nossa vida era uma fuga, o horror da noite, os olhos sempre arregalados. Seja por genes, seja por espírito, carregamos essa lembrança inconsciente. A música aqui contida remete à isso, daí seu primitivismo. De um modo hiper sofisticado, Stravinski criou música que recorda a vida primitiva sem soar jamais "primtivo", muito pelo contrário. --------- É um milagre de técnica para uma orquestra conseguir tocar coisa tão complicada, barulhenta, perigosa. Um amigo músico me diz o quanto é dificil tocar alto, como em volume alto tudo pode dar errado e se tornar mero ruído. A Sinfônica de Londres jamais exita e Claudio Abbado domina tudo na ponta dos dedos. É maravilhoso. E ainda bastante perturbador.