OUVIDOS

Coisa pouco observada, esquecemos que os ouvidos humanos deveriam ouvir muito melhor em tempos passados. Basta dizer que por volta de 1850, o ruído cotidiano mais alto que voce teria de conviver seria o som de um cavalo trotando ou o choro de seus filhos. Nada de motores de carros, buzinas, aviões, sirenes, baladas ensurdecedoras, shows, construções, britadeiras. Pensei isso nestes dias em que ando estudando a história da música clássica. Observe: na música POP, rock e jazz inclusive, não há variação de volume. Não confunda! Há variação de andamento, não de volume. Na célebre canção do Nirvana, por exemplo, há calmaria e aceleração, mas o volume se mantém. Voce não sente a tentação de mover o botão de seu aparelho. Isso não ocorre na música clássica. Os momentos de pianíssimo são comuns. Pianíssimo é o quase silêncio, o som quase inaudível. Música feita para ouvidos mais delicados? Provável. ------------------------------- Hector Berlioz inaugurou o barulho em 1830 com sua Sinfonia Fantástica. Hoje ela não parece tão barulhenta, mas há duas coisas nela muito interessantes. Primeiro a falta de melodia-guia. É quase música só arranjo, sem temas. Segundo, há um momento, no último movimento, em que ecoa um sino. São dois minutos em que todo Black Sabbath, sim, Tony Iommi, estão ali. Pasmem! O nome do movimento, o quarto, é Dia de Sabbath! --------------------- Prokofiev veio depois de Berlioz, e é bem melhor. Viveu até os anos 50 e por não querer sair da Russia, teve de respirar debaixo do sapato de Stalin. Várias obras suas foram censuradas. Motivo? Ninguém sabe. Ouço ROMEU E JULIETA. E creia, é muito, muito barulhenta! Fascinante também. Prokofiev, como Berlioz, foi muito atacado por causa do ruído. O som ofendia os ouvidos sensíveis. Mas caramba! Que música maravilhosa a desta obra-prima! É Romeu e Julieta em versão russa, não italiana ou inglesa. Portanto é música fria e quente, violenta e melancólica, rica e rural. Aqui a história de Shakespeare é vista como profusão de sangue e rivalidade entre famílias. Estou encarando a música clássica do século XX e adorando essa viagem. Há muito, muito para se ouvir e a viagem é gloriosa. Prokofiev, rival de Stravinski, por exemplo, é uma surpresa. O conhecia como o cara do Pedro e o Lobo, e autor das trilhas sonoras dos filmes de Eisenstein. Mas ele é imenso. Procure ouvir esta obra dos anos 30. E muita atenção no uso da percussão.