O FILME MAIS AMADO POR MEU PAI

Ele já havia o assistido na época, no cine Metro, na avenida São João. Agora esse filme ia passar na TV, vinte anos depois. A família se juntou e vimos o tal filme. Dizem que filmes e discos que nos marcam, que têm significado em nossa história, deixam a lembrança não só daquilo que eles são, mas também de onde estávamos quando os vimos, com quem, que hora era, e até do clima da estação. Nessa noite eu recordo da luz na sala, de onde cada um de nós estava sentado, da temperatura da noite, e dos comentários feitos por todos durante o filme. Minha mãe riu muito. Eu, muito criança, mal entendi do que se tratava aquilo, mas senti alegria pelos cenários e principalmente fiquei encantado com as reações de meu pai. ---------------------------------- Meu pai era homem de poucas palavras e reações comedidas. Nada triste, ele era fechado. Era aquilo que na primeira metade do século XX se chamava Homem. Correto, quieto, maço de dinheiro em um bolso, muitas chaves no outro bolso, lenço branco, bigode, cheiro de loção de barba, trabalho incessante. Ele não deixava a guarda baixar. Quando recebeu a carta dizendo que seu pai, meu avô, havia morrido, ele a dobrou, colocou no bolso, e quieto foi para o trabalho. Nunca dizia que uma canção ou um filme era bom, antes dizia: Mais ou menos, ou então, não é ruim. ----------------------------- Mas nessa noite, durante esse filme, ele ria sem guardar pudor. Torcia sem disfarçar. E, lembro até hoje, 45 anos depois, falou coisas como: Eu queria ser irlandês!, Olha o bêbado da aldeia!, Que lugar maravilhoso!. Meu pai coçava o nariz ao se emocionar. E como todo cara muito emotivo, derramava lágrimas discretas, envergonhadas, logo negadas. Nessa noite eu vi tudo isso. Não assisti o filme, deitado no tapete cinza da sala, eu assisti meu pai. -------------------------------------------------- Não há a menor possibilidade de analisar o filme. Ver DEPOIS DO VENDAVAL ( THE QUIET MAN ), é como ver meu pai. Tudo que posso dizer é que a fotografia tem momentos de uma beleza perfeita, idílica, e que a Irlanda de John Ford é tão falsa como é o oeste de John Ford. E isso é um elogio. Ford foi realista em Vinhas da Ira ou O Delator, mas aqui, e em tantos outros filmes, ele cria o mundo como ele deveria ser. Fazer esse tipo de construção pode ser vexatório ou no máximo bonito, mas em Ford é exemplar. Isso porque o que ele cria não é simples fantasia, ele conseguia mostrar aquilo que a média das pessoas queria acreditar. Ele não inventava o western mais bonito ou mais aventuroso, ele nos dava o mais IDEAL. Por isso o encantamento. Voce sabia que não era, mas dentro de voce tinha de ser. Desse modo, este filme mostra como um homem deveria ser, como uma mulher deveria ser, e como a Irlanda deveria ser. Para a geração de meu pai, este DEVERIA SER ainda era um sonho vivo e cotidiano. Para a minha geração esse imperativo tinha o encanto do tesouro perdido. Para a geração atual, este filme parecerá um texto em aramaico. Incompreensível. Esse ideal idílico está morto para eles. Mais que morto, é um cadáver anônimo. Para o mundo de hoje todo idílio passa pela vida em outro mundo. Não é mais possível a felicidade numa aldeia banal em um país banal. ------------------------------------ Para quem Nunca viu um filme de John Ford: Não tem a menor importância o enredo. Ford fazia filmes para poder gravar os amigos-atores comendo, dançando, bebendo e brigando. Seu único interesse era filmar enterros, casamentos, festas, cafés da manhã, pubs e almoços em casa. O resto, a tal ação, era só pra encher linguiça. O exato oposto do filme de hoje, onde tudo que não seja o tal FOCO do enredo, não existe. Ver um filme de Ford é prestar atenção nos tempos mortos, e relaxar nos momentos centrais. Um cara original. Indeed.