ANJOS, FANTASMAS E ESPÍRITOS

   Michael Almereyda é um famoso diretor de teatro inglês atual. Nos extras do filme que acabei de ver, ele narra um texto soberbo sobre a atriz Gail Russel e o ator Ray Milland. Tão informativos quanto poéticos, comecei a perceber que há algo de muito estranho alí. Pois bem, na última parte do extra, ele fala algo que cala fundo no meu coração: Virginia Woolf dizendo, em 1926, auge do filme sem som, que a invenção do cinema trouxe uma experiência inédita até então: a de se ver fantasmas. Pela primeira vez nós estávamos vendo gente que era pura luz, aparições irreais, espectros. Almereyda desenvolve isso, e além de mostrar que com o correr do tempo o que vemos são pessoas realmente mortas, o que deixa a observação de Virginia ainda mais verdadeira, nós, diante de um filme, somos os fantasmas, os anjos, os espíritos.
 O extra mostra então cenas de filmes sobre almas, e dentre eles, Asas do Desejo, o filme magia de Wim Wenders. A câmera rodopia entre as pessoas naquilo que imaginamos ser o modo angelical de ver a vida. Pois então, o que somos nós, ao ver um filme, senão anjos vendo algo sem ser percebido? Se as imagens do filme são de uma realidade de espectros, sem solidez, nós as vemos como anjos, olhamos mas não podemos tocar, falamos mas não somos ouvidos, torcemos mas não podemos influir.
  Incrível não? Eu jamais havia notado que vendo um filme estou no lugar de um anjo vendo a Terra. Vejo, mas não estou lá. Me coloco numa dimensão à parte. Torço. Rezo. Quero. Mas não posso agir. Os atores não podem me ver. Meu desejo não mudará o roteiro. A vida no filme acontece lá e eu vivo aqui. Olho. Rodopio. Os anjos de Berlin sou eu.
  Mas incrível ainda é uma cena do filme em que esses extras estão. Ray Milland e Gail Russel andam por uma rua inglesa de 1942. A câmera foca neles, acompanha seu passeio posicionada na frente do dois. Ao fundo vemos uma rua de paralelepípedos, casas de comércio, umas poucas pessoas vivendo seu dia a dia. A cena não tem nada de extraordinário. Uma simples cena de diálogo em um filme. Mas quando vejo essa cena, não sei o porque, penso: Espera! O que houve? Estou vendo magia aqui! Esse lugar...essa gente...são...fantasmas! Belos fantasmas, cotidianos fantasmas...que se passa? Estou hipnotizado...
  Pensei ser esse apenas um lapso meu. Mas não é que nos extras Almereyda mostra essa cena, tão banal, como momento em que a teoria dele se prova? São fantasmas. Estão mortos. São intocáveis. Mas eu os vejo como espectros de luz. Vivos. Vivendo uma vida deles, só deles. Em um local que é COMUM MAS AO MESMO TEMPO É FANTÁSTICO.
  O filme se chama O SOLAR DAS ALMAS PERDIDAS e é nele que pela primeira vez se ouviu Stella by Starlight, uma canção de Victor Young que se tornou ícone do jazz ( vc já a ouviu com Miles Davis, Charlie Parker, Sinatra, Ella, Chet... ). Nunca pensei que fosse uma canção de um filme sobre fantasmas. O roteiro fala de um casal que se muda para um casa que tem dois fantasmas. E, como diz Almereyda, é um filme muito ruim com cenas maravilhosas. Ele é todo errado, esquisito, com momentos ridículos, mas ao mesmo tempo tem duas atuações sobrenaturais ( Gail e Ray ) e os fantasmas ainda dão grande incômodo. Foi o primeiro filme da história a tratar o sobrenatural não como aventura ou comédia, mas como um fenômeno sério. Grande sucesso em seu tempo, 1944, merece ser visto por aquilo que nos provoca. E em dvd, pelo extra.
  Com ele assisti também O SOLAR DE DRAGONWYCK, primeiro filme de Joseph L. Mankiewicz, que não vale à pena, e THE GHOST AND MRS MUIR, também do mesmo diretor e que vale muito à pena. Muir é uma viúva que vai morar numa casa na praia e lá conhece o fantasma do capitão que lá vivia. É romance total e tem Gene Tierney hiper bonita e Rex Harrison estreando na América. Ver Rex é sempre prazer supremo. O filme é dos três, o melhor. Não tem nada de ruim ou menos que bom.
  Ah sim, o filme que contém a cena fantástica e os extras, O SOLAR DAS ALMAS PERDIDAS, não é de Mankiewicz. É de Lewis Allen, um diretor classe B. Ray Milland ganharia o Oscar no ano seguinte por FARRAPO HUMANO, de Wilder.