A FÁBRICA DE PECADOS

   Roger Scrutton diz numa palestra que a esquerda se tornou uma espécie de fábrica de reivindicações. O menu de pedidos cresce sem parar e nada indica que tenha um limite. Como exemplo ele dá a questão gay. Qualquer outro assunto pode ser utilizado.
  Primeiro se pedem direitos iguais. Justíssimo. Depois o casamento gay civil. Justo. Então o casamento religioso. Aí já parece coisa estranha. Pra quê? Mudar uma tradição dentro de uma instituição que existe em função da manutenção da tradição? Então o que acontece? Antes, se voce era a favor dos direitos civis LGBTS, ok, voce era deixado em paz. Mas agora se voce não é a favor do casamento gay na igreja, igreja que era até ontem o mal, voce é homofóbico. Mesmo que seja a favor de todo o resto da agenda. Então voce é obrigado a estar em constante reciclagem, aceitando de forma passiva reivindicação sobre reivindicação. Na verdade a filosofia da esquerda é uma só: Observar até onde o tecido social resiste. Puxar o limite ao máximo. Como desejo de criança mimada, os pedidos jamais terão um fim, porque não pedem satisfação, pedem subversão.
  A vigilância sobre todos é constante. Tudo que voce faz ou aprecia hoje, poderá amanhã ser considerado pecado. Este livro pode ser denunciado como machista ou racista, este compositor poderá ter viés fascista e sua postura poderá ser considerada errada. O denuncismo, palavra bonita para dedo durismo, impera.
  Meu avô caçava lebres em Portugal e meu tio serviu o exército na África. Hoje meu tio seria um colonialista assassino ( ele não chegou a matar ninguém, mas levou uma granada no lombo e ficou sem o baço ). Meu avô seria um assassino de lebres. Que Moçambique deveria ser livre é óbvio. Mas uma análise mais profunda revela que meu tio não esteve lá porque quis. Mais ainda, nenhum ser humano pode ser reduzido ao que ele fez durante um ano de sua vida. Por isso a pena de morte é injusta. Meu tio pagou qualquer erro com a quase morte no hospital e a invalidez consequente. E se voce usar a tese do nazismo, de que então um soldado nazista pode ser absolvido, eu digo que sim, foi isso o que aconteceu. Os comandantes não podem ser absolvidos, pois eles tinham o massacre como objetivo de vida, o soldado não. 99% deles mal sabiam onde estavam e em quem estavam atirando. A guerra é confusa para o soldado. Isso poucos filmes mostram. Eles atiram como autômatos. O bom soldado não pensa, reage. Veja como o tema é difícil e inconclusivo. Muito mais fácil dizer: Soldado colonialista = assassino, e durma em paz.
   Pare e imagine que em 2050 todos nós seremos considerados primitivos. Comedores de pobres bichos indefesos. Poluidores. Gente que queimava combustível, usava madeira e plástico. Seremos tão massacrados quanto o povo que vivia no tempo da escravidão e nada fazia contra esse crime. Iremos ser rotulados. Nossa vida será vista como um pecado sem fim. Nosso legado será podado.
   Chesterton tem uma bela imagem que é mais ou menos assim: Imagine que um colibri, um belo dia, começasse a fazer pequenas estátuas de um colibri. E depois passasse a anotar como foi seu dia. O que voce pensaria? Que ali estava acontecendo um milagre. E que aquele colibri era um tipo de deus, ou um enviado dos seres superiores. Então me diga porque voce acha que o ser-humano, que é esse colibri, é uma animal tão nocivo e inferior?
  Chesterton disse isso como denúncia da mania moderna de condenar o homem como o grande mal do planeta. Hoje, em 2020, essa tendência aumentou muito. A natureza é vista como mundo perfeito e o homem seria o vírus que veio botar fim à tudo. Será?
  Estrelas morrem todo dia e pelo que se sabe, não há nenhum humano lá. A primeira dificuldade é aceitar que o fim é parte da natureza. Tudo termina, mesmo sem o homem. Tigres comem cervos ainda vivos. Leões matam filhotes de elefantes órfãos. Leopardos não dividem a água com zebras doentes. Macacos cruzam com todas as fêmeas. Se somos parte da natureza, somos assim. Egoístas. Mas somos mais que isso. Sinto dizer algo tão pouco da moda, mas somos melhores. Melhores pelo simples fato de esticarmos a mão para puxar um cervo fora do rio cheio de jacarés. Por ajudarmos quem não é de nossa espécie. De nossa tribo. De nossa família.
  OH! mas o homem, miserável, pode destruir o planeta! Sim. Ele pode. E ele é tão maravilhoso que ainda não fez isso. Mesmo podendo fazer. Animal que tem livre arbítrio. Animal que é o único a apreciar não só o que ele fez, o que lhe pertence, mas até mesmo aquilo que jamais será dele. Ser que se interessa pelo que não é ele mesmo. Um milagre. Único bicho que se distrai da luta por comida. Que ousa não comer. Ousa não cruzar. Ousa ser não animal.
  O homem cria. Eis seu milagre. Faz da pedra uma enxada e da terra, tinta. Faz do inanimado um foguete, uma vacina, música. Ele cria. Ele modifica. Ele se vê. Vasculha sua alma.
  Mas hoje é moda dizer que não. A Terra não precisa de nós. Os bichos vivem sem nós. Modo simplório de pensar. Pouco trabalhoso. Sem nós a Terra nem Terra seria. Um pedaço de pó com umas coisas vivas repetindo por tempo indefinido atos sempre iguais. Esses bichos seriam extintos mesmo sem nossa ajuda. Como foram dinossauros. Esses bichos morreriam em secas. Morreriam em nevascas. Morreriam na queda de meteoros. Sem nossa ajuda.
  Estamos aqui. E apesar do meu avô caçar lebres e meu pai ter tido pássaros em gaiolas, somos o milagre. Somos o único milagre na Terra. E isso não é um erro.