SOBRE O TAL MUSEU E SOBRE A HISTÓRIA DO BRASIL

   Trabalho com educação. E amo meu trabalho. Compreendo os alunos, todos eles. Não me misturo com professores. Alunos são ainda indivíduos, professores, salvo raras coragens, são grupo comandado. O museu pegou fogo e veio abaixo. Nada mais óbvio. Sendo acidente, é um ato falho perfeito. Sendo crime premeditado, é de uma lógica perfeita. Por que?
   Um bando de brancos assassinos vem ao Brasil para matar índios e destruir o paraíso. Depois, esses mesmos monstros escravizam negros. Daí vem a ditadura militar de 64 e enfim surge Lula, nascido em meio ao povo. Esse é o modo como se conta a história do Brasil hoje. Não há amor ao passado que aguente tal narrativa. É dada a ideia de que se deve zerar todo o país até 2003. Só então começa a verdadeira história do real país. Crime hediondo contra uma história cheia de dubiedades e de erros e acertos. Perto desse modo de reduzir a história, queimar um museu faz todo sentido.
   Se diz que somos índios e negros. Talvez sejamos. Mas há quem não o seja. Esses têm duas escolhas apenas: Fingir ser tupi ou se envergonhar. Nessa equação não há lugar para um imigrante europeu ou asiático. Ele deve se reconhecer como filho de um explorador. E se ajoelhar no altar da culpa. Eu falo palavras indígenas e ouço música de preto. Sou tropicalmente indolente. Como feijão. Mas também falo uma língua europeia descendente do latim. Cresci em cultura moldada pela renascença, pelo cristianismo e pelo iluminismo. Conheço escrita, matemática, cinema e melodias românticas. Mas faz de conta que sou africano e guarani. Eis a cultura do fake. Sou uma complexa mistura de gregos, tupis, iorubas, portugueses, romanos, yankees, ingleses, romanos, árabes, indianos, russos e alemães. E adoro a cultura britânica. Mas faz de conta que não. Sou apenas um brasileiro. E sendo brasileiro, sou negro e índio. E se me reconheço como filho de europeus, sou um boçal.
   Foi de uma mediocridade hilária ver postagens comemorando o incêndio do museu. Diziam ser o fim merecido de uma cultura burguesa e escravocrata. Esses pobres idiotas me lembram aqueles filhos mimados de pais odiados. Recebem educação dos pais e depois usam essa educação mal absorvida para negar a própria família. Fiz muito isso. Sei do que falo. A vergonha simplista das origens faz com que um cara se torne o mais imbecil dos seres. Ele mutila a própria raiz. Imagina raízes mortas e podres. Ser um humano inteiro é compreender e aceitar sua história. Entender que o homem do século XIX não era apenas um escravocrata. Era muito mais que isso. Assim como não somos apenas matadores de animais que apertam teclas e assistem filmes pornô. Perceber que índios foram mortos, mas que os marujos faziam apenas seu trabalho e que tiveram uma coragem de gigantes.
  A história do mundo é uma história de guerra. Uma luta pelo poder. O mais forte vence. O mais fraco tenta sobreviver e se fortalecer. Dentro disso há a bela saga da ciência, da arte, dos homens e mulheres mais inteligentes e mais criativos. Negar a crueldade e a beleza dessa história é querer transformar todos em crianças, ou pior, em bichos. O ser adulto sabe que o mundo é duro. Injusto e desafiante. Sempre foi. Sempre será. Nunca houve um paraíso de índios. Eles guerreavam entre si todo o tempo. Torturavam. Estupravam. Nunca houve uma alegre vida africana. Eles viviam em guerra. E os escravos eram capturados nessas guerras. A escravidão sempre existiu em toda cultura humana. E, pasmem!, foi o cristianismo quem primeiro lutou contra ela.
  Não digo que devemos nos conformar com o mal. Lutamos contra ele dia  a dia. Mas devemos saber que ele sempre existiu, existe e existirá. O mal maior é quando acreditamos em sua fraqueza. Reduzir a história a "tempos do mal" e "tempos do bem" é dar trégua à maldade.
  O museu caiu.