BORN TO RUN - BRUCE SPRINGSTEEN. GOTAS NA JANELA.

   Há um momento em que voce olha pela janela e vê gotas grudadas no vidro. Então a luz da lua ilumina essas gotas e um pássaro voa. E voce acha que alguma coisa foi perdida nesse momento. Como se uma taça tivesse caído e se quebrado. Os cacos podem ser colados, mas nunca mais o momento da queda será esquecido. Isso é Bruce Springsteen.
  Em 1975 os EUA estavam no escuro. Um presidente havia renunciado, a guerra estava perdida e não havia emprego. A costa leste via cidades sendo abandonadas ( Atlantic City ) e outras falidas ( Detroit, Philadelphia e New York ). Mas o americano é no fundo um religioso. E instintivamente sabe que é preciso morrer para poder viver. Rocky seria o filme do ano. Mas também havia Um Dia de Cão, Nashville, Taxi Driver e Jaws. Desespero, melancolia, loucura e medo. Críticos de rock diziam que 1975 era o pior ano da história. Falavam isso porque as bandas mais populares eram o Aerosmith e os Bay City Rollers. Ora seus bobos! 1975 foi o ano de Horses da Patti Smith, do Captain Fantastic do Elton John, do Siren Roxy Music e Young Americans do Bowie. 1975 foi ano de Born to Run. E é inescapável um dia escrever sobre esse disco.
  Em 1968 The Band salvava almas pela amizade. Um clube de amigos tocando no porão para convidar amigos a sair da névoa púrpura. Em 1975 Bruce cantava na rua. Gritava para tirar gente da depressão. Em 2018 ouço o disco pela segunda vez em minha vida. ( ouço Bruce desde 1984, muito, mas não este ). Em vinil, o lado A é um tipo de preparação para o que ocorre no lado B. Todo esse primeiro lado é uma fotografia da América. Bruce apresenta suas histórias como um tipo de Walt Whitman modernista. Sem ironia, Bruce crê em tudo que vê e em tudo que fala. Não há jogo nele. Quando digo modernista é pela época em que vive, seu estilo é romântico, se joga de alma. Thunder Roads é a confissão de alguém que espera a hora certa. Este é o terceiro disco dele. E acontece a hora: o lado B, um dos mais milagrosos do rock.
  O som de Bruce é uma mistura do sax das bandas negras dos anos 50, a batida de Phil Spector e o piano, tocado por Roy Bittain, um piano que é jazz, é erudito e é Broadway, tudo junto. O disco é um disco de piano, não de guitarras. O disco é um momento de plena e absoluta transcendência. Dessas faixas, quatro, saiu toda a carreira do U2 por exemplo. Mas também do Pearl Jam, Billy Joel, John Mellencamp, e mais toneladas de bandas, cantores e cantoras do mundo. A faixa Born To Run sozinha é um fonte de inspiração. Ela tem 4 fases e 4 andamentos distintos. Vai da balada estradeira até o dedilhado do piano que traz lembranças de noites brilhantes. Mas esta faixa tem o mesmo caráter de todo o disco: Bruce está morrendo e ao mesmo tempo começa a viver. Nisso ele é único, pois mesmo um disco sagrado, como por exemplo Astral Weeks, não apresenta o processo de renascimento inteiro, Van Morrison olha de fora, apresenta uma observação genial, enquanto Bruce é o que observa e ao mesmo tempo aquele que faz a via crucis.
  Sim, Bruce está imbuído da tradição protestante da América. Como diz Scruton, se você tirar a igreja da nação, a América desaba. Os shows de Bruce, shows sem fim, de entrega, são cerimônias religiosas, de fé, crença e de renovação. Há um momento em She's the One em que a mágica acontece plenamente. Uma espécie de suspiro, de suspense suave, como um passo insuspeito, em que todo o disco conflui para uma espécie de orgasmo sonoro espiritual. É um milagre. E quando a conclusão chega, na última faixa, longa, estamos dentro de Bruce. Como um flash sem tempo, Jungleland reverbera na nossa mente e alma.
  Born to Run é uma catedral musical. Bruce cria um estilo, hiper imitado depois, equivalente ao que Bach fez no barroco. Frase sobre frase num tipo de "fuga" bachiana. Acordes de piano em harmonias originais. Vocais rasgados como violoncelos graves. Refrões e riffs em função de uma ideia. 1975 foi um ano crucial. Os críticos nada entenderam. Como sempre o fazem.