BIRDMAN, UMA SURPRESA

   Desde o inicio o cinema tem sofrido de esquizofrenia. Nasceu como circo, curiosidade de feiras, e logo passou a aspirar ser arte. Buster Keaton e Douglas Fairbanks conviviam com Murnau e Pabst. Hoje sabemos que Buster Keaton era melhor que Pabst, e que as aventuras de Fairbanks parecem melhores que 90% dos filmes de arte. Mas essa divisão perdurou para sempre. Os filmes de Tarzan ou Jean Renoir, faroestes ou o neo-realismo italiano, James Bond ou a Nouvelle Vague, Herzog ou Spielberg, Bergman ou os Irmãos Marx. Eu amo todos esses nomes e por isso os citei, e sei que aqueles que amam filmes amam todos eles. John Ford, Hitchcock conseguiram unir os dois campos, mas são raros. É disso que este filme fala.
   Já aviso que se voce o assistir numa sala de cinema irá acompanhar vários corpos se movendo no escuro. Ele tem tudo para chatear e irritar muitos espectadores desavisados. Porque é um filme labiríntico. Estamos dentro de um teatro. Nos seus corredores, camarins, palco, porões se passa quase todo o filme. Um ator-celebridade produz, escreve e atua em uma peça. Com essa peça ele tenta renovar sua carreira e principalmente ser reconhecido como um ator de verdade. Ao seu redor vemos um outro ator, um tipo do ""método"", metido a artista, a cool, a realista. Há ainda uma atriz insegura, a ex-esposa que o visita, a filha junkie, uma crítica num bar. E a visita do Birdman, o personagem que fez desse ator um astro. Tudo isso é mostrado com câmera na mão, muitos travellings e um ambiente escuro, sujo, frio, sem glamour. Muito mais importante é o que se fala. E se fala tudo sobre o cinema de 2015. Birdman é o epitáfio do cinema de hoje. Ou não.
   Filmes de quadrinhos, comédias infames, atores mimados que dão prêmios para outros atores mimados, filmes vazios, draminhas bobocas, sobre todos os assuntos o roteiro, muito irado, mete a mão e o pé. E o personagem de Keaton, ansioso para conseguir prestigio, representa todos esses atores que se perderam ( e alguns ele cita explicitamente ), atores que se venderam por uma capa, por uma fortuna que será gasta em um fim de semana. Fassbender, Renner, Downey Jr., todos citados....""até neles botaram uma capa?""
   O filme é um labirinto, mas também tem uma beleza que chega ao sublime. Quando ele tem de cruzar a rua de cuecas, um vôo sobre a avenida, e o final, inesquecível. Voce pode até se chatear, mas não vai esquecer deste filme. Porque ele tem aquilo que muito poucos filmes têm hoje, ele é sincero. Iñarritu ama os filmes e passa uma enorme verdade neste filme. Por mais ridiculo que Keaton pareça às vezes, por mais idiota que Norton possa ser, eles são atores, e Iñarritu ama esses atores. Assim como ama o cinema, mesmo que seja um filme bobo do Birdman.
   Eu amo o cinema dos anos 30 e sinto tristeza por não termos mais roteiros como aqueles. Em 1930 o cinema era jovem, hoje ele é um senhor cínico e esse tempo de novidades jamais voltará. Mas mesmo assim, ainda me pego ocasionalmente vibrando com os X Men, adorando Os Guardiões da Galáxia e querendo rever a Vida de Pi. Se o filme de arte virou apenas jornalismo ( todo filme de arte hoje parece uma denúncia de jornal das oito ), o cinema popular ainda pode nos encantar. Este filme nada tem de cinema popular, mas ele encanta. E no final, inesperadamente nos faz sonhar.
   Durante a exibição eu pensei em Fellini, em Ophuls e em Carné. Mas pensei por pensar, este filme não cita ninguém, ele é original. E transborda talento. Iñarritu faz aqui seu melhor filme e Michael Keaton, sempre um ator subestimado, tem seu papel. Teatro, atores, sucesso, arte, familia, vida, morte, cinema. Ele cita tudo, entra dentro do espirito de tudo e sai com este filme. 
   Eu fiquei admirado. Surpreendido. E agradecido. É o filme do ano.