NENHUMA PAIXÃO DESPERDIÇADA- GEORGE STEINER. A GRANDEZA DE UMA PESSOA.

   George Steiner é judeu. E ele jamais nos deixa esquecer isso. Nascido em Paris, em 1929, educado e começando sua carreira de professor em Londres, ele se fez um dos grandes críticos da cultura do século XX/XXI. Lecionou em Oxford e em Harvard. Sua cultura é enciclopédica. Ele vê a cultura do ocidente de dentro do judaísmo. Para Steiner, o Ocidente é filho de Atenas e de Jerusalém. Como pensador refinado, ele nunca afirma a existência ou a não existência de Deus. Seus guias são Kierkegaard, Spinoza, Nietzsche, Marx, Pascal e Kant. Profundamente filosófico, sem medo, ele afirma e duvida, deixando claro todo o tempo que toda a glorificação do texto, da análise, do contra-argumento, da bibliografia, tão caras ao ocidente, têm claras raízes judaicas. O Velho Testamento, a Torá, são modos fundadores de análise textual. Este livro precioso ( olha minha influência judaica dando as caras ), se divide em palestras, teses, capítulos de obras, folhas avulsas escritas entre 1978- 1995. 
  São 21 ensaios em 490 páginas. Dificil escrever sobre seus textos. São tão profundos, tão claros e ao mesmo tempo complexos, que apresentá-los a quem não os conhece é como os desmerecer. Não há como comentar sem rebaixar sua grande altura. O que posso dizer? 
  Posso falar da profunda impressão, impressão que chegou ao quase pavor, da visão de Steiner sobre a beleza, a verdade e a dor de se ser um judeu. Ele consegue, racionalmente, unir a morte de Jesus ao campo de extermínio nazista. E não teme tocar na ferida: Nós odiamos todo aquele que nos chama a atenção para a perfeição possível. Jesus, assim como Sócrates, morre por ser insuportávelmente perfeito. Por cobrar de nós a perfeição da qual abrimos mão. Pessoas assim sempre serão martirizadas. É a explosão da individualidade dentro de um mundo que preza a anônima mediocridade. No caso de Jesus, e esse é um texto que me perturbou, judeus serão perseguidos sempre, mesmo que de forma inconsciente, por terem "" jogado fora a chance de dar ao mundo o reino de Deus. Os judeus negaram Jesus, nunca o aceitaram, e isso faz com que o ocidente veja neles aqueles que optaram pela dor, pela morte e pela desunião.""
  Steiner tem um capítulo soberbo sobre a América. Como pode um país que tem um museu de bom nível e uma sinfônica até no deserto, não conseguir produzir um só filósofo relevante? Não ter um grande compositor, não ter ninguém que se compare a Mann, Joyce, Proust ou Kafka? Um país com centenas de ótimas universidades não produzir um único grande pensador,ou uma grande nova teoria de arte, de filosofia, de politica ou de psicologia.  Steiner lembra que mesmo na ciência, todo grande desenvolvimento teve algum estrangeiro emigrado envolvido.  Sem a mente estrangeira, os EUA se tornam um país cheio de dinheiro, porém pobre de ideias. 
  Ele nos mostra então o porque. E sua tese não faz média com nosso tempo bonzinho. Grandes ideias nascem na pobreza, na guerra, na ditadura, na luta. A sociedade americana, e nisso ""ela pode estar certa""", optou pela democracia e pelo bem da maioria. Acontece que a maioria sempre será incapaz de apreciar ou de entender coisas complexas. Não se ensina numa grande universidade a ouvir Mozart ou a ler Wittgeinstein. Isso nasce com a pessoa. Nos EUA a maioria quer ter museus onde se tenha a POSSE de tesouros europeus, mas onde imperem produtos culturais ralos, simples, fáceis de entender. Mais que isso, é insuportável a um americano, ou incompreensível, a ideia de que uma poesia ou uma sinfonia possam valer mais que dinheiro. Uma vida vivida na pobreza, mesmo que plena de poesia e de filosofia, é uma vida jogada ao lixo. Numa sociedade SINCERA como a americana, que escancara a ganância material da maioria dos homens, a grande arte, que requer solidão, sacrificio e estranheza, se torna uma doença, algo a ser tratado. A Europa, lugar profundamente não-democrático, onde a ideia de genialidade, de beleza na pobreza, do charme da loucura, está arraigada, a obra de arte é vista como parte da vida, coisa cotidiana, normal, privilégio a que se tem direito de usufruir pelo dom SUPERIOR de uns poucos escolhidos. Sim, toda arte e filosofia são aristocráticas. Não existe grande humanidade onde a democracia impera. Eis um paradoxo. A alma só atinge sua plena grandeza na adversidade. Steiner cita a literatura russa sob o jugo dos czares e depois do stalinismo como exemplo de força espiritual. Para ele, grandes pensadores hoje estarão fermentando no oriente, na África, na América do Sul ou na Palestina. 
  Impressiona como esse modo de pensar se afina com o meu. A falta que faz na arte do primeiro mundo de hoje de uma certa sujeira, de algo de profundamente despojado, imperfeito, cruel, injusto e desafiador. A higiene, a organização, a garantia das bolsas de estudo, tudo isso contribui para a construção de uma arte e de um pensamento subjugado, preso, sem desafios.
  George Steiner ainda escreve sobre Kafka, Weill, Husserl, Freud, Marx, Hegel, Péguy...e muito sobre o Velho Testamento. Sócrates, Platão e Jesus de Nazaré. Sempre sob a ótica assumidamente judia. Desse povo escolhido. De gente que pensa sobre o pensamento, escreve sobre a escrita. Desse povo de rabinos que criou o marxismo e a psicanálise, formas de judaísmo revigorado. O mais terrível é que Steiner crê no sacrifício final do povo de Israel. Sua total aniquilação. E crê que nesse momento o mundo perceberá que com Israel se perde o sentido de história, de Deus e de continuidade. Ficaremos orfãos. 
  Ele não nos poupa. Adoramos odiar judeus. Adoramos odiar intelectuais ( que se parecem todos com judeus ), cristãos verdadeiros ( que são filhos de judeus ), marxistas ( que pregam a igualdade do Velho Testamento ), esquisitos ( com sua cara de gente do gueto ). Odiamos todo aquele que não é da tribo. A tribo do comum, do igual, do parecido comigo. 
  Não, não pense em sionismo. Steiner acusa Israel de negar, com seu estado, as leis de Moisés. De não ter aprendido com a Shoah ( o holocausto ). De ser injusto. Desigual. E pouco espiritual.
  George Steiner é o intelectual clássico. Ele perturba. Desassossega. Corrompe.
  Ao fim ele defende Judas. E nisso ele toca em nossa maior ferida... Judas, o judeu, o grande traidor.
  Sem mais palavras. Steiner sabe, assim como eu intuo, que a palavra tudo estraga. Leia.