REPARAÇÃO, UMA OBRA DE IAN McEWAN

Crianças, como disse Chesterton, não mentem. Elas são absolutamente fiéis ao que percebem. Sabem, ainda, olhar a vida. Pouco distraídas pelas coisas que os adultos pensam, livres para sentir e observar, elas reagem sem filtros. Por isso a mentira de Briony é dúbia. Ela fala exatamente o que viu. Seu testemunho é descrição de um ato. Nada para ela é mentira. 
Em minhas aulas de literatura se enfatiza o quanto é dificil escrever sob mais de um ponto de vista. É uma arte refinada que se tem perdido, a arte de criar várias visões concomitantes sobre o mesmo ato. Ian McEwan faz isso com naturalidade e por isso é um mestre. Como Henry James, com quem muito se parece não em tema, mas no modo de escrever, ele nos confunde ao descrever várias verdades. Ela sabe que a verdade depende de se querer crer nela. E que toda verdade depende de se saber olhar. Nunca de se saber pensar. Briony diz a sua verdade. E destrói duas vidas. Ela é inocente. 
Escrever uma frase que seja original. Descrever uma rua ou um clima de um modo novo. Essa a marca de um grande autor. Assisti um filme com Clive Owen onde um professor de literatura, feito com garbo por Owen, recita o final de Rabbit Run de John Updike. Li esse livro em 2009 e só uma vez. Pois bem, a escrita é tão forte que imediatamente identifiquei o livro. A frase, belíssima, estava guardada numa folha especial em minha memória. E eu nem sabia disso. Mas lá estava. Ian McEwan é do tamanho de Updike. Talvez tão grande quanto Bellow. Com certeza é o maior autor vivo da lingua inglesa. E nunca vai ser nobelizado.
Há um momento no livro em que os dois amantes se encontram na rua. E ambos se sentem constrangidos. Por anos eles se amaram via correio e agora temem se ver e se intimidar pela emoção. Esse encontro, coisa de 4 páginas, é descrito de um modo tão delicado, tão verdadeiro e com tanto amor pelos dois que ao ler eu senti estar diante de um quase milagre. Isso é coisa de imenso talento. O livro, e várias outras cenas provam isso, é uma obra-prima e viverá enquanto alguém souber ler. O final, em que percebemos que o que lemos foi contado por Briony anciã e prestes a perder a memória, é outro momento de brilho gigantesco. Briony gostaria de ter salvado dos dois amantes. Mas ela não pode. 
Foi feito um filme sobre este livro. Joe Wright o fez. Adorei. Mas, claro, o livro vai muito mais longe. O filme é um trailer do livro. Um lindo trailer. 
O filme de Owen termina com o professor lendo um belo trecho de Ian McEwan ( pois é, que coincidência não? ). Ian fala do que seja a arte. A arte é a fala de homens imperfeitos que tentam alcançar a perfeição. E que nesse processo, fadado ao fracasso, nós, leitores, somos erguidos e ao ler tomamos contato com aquilo que temos de MELHOR. 
Ian McEwan é um nobre portanto. A arte, mesmo a mais realista e pessimista, existe para nos aperfeiçoar. Para nos tirar de um mundo incompreensível e nos levar a tomar contato com o melhor. Veja, para nos erguer, não para erguer o mundo. Para nos transformar, não para nos fazer entender a vida.
Este livro, triste, belo, cruel, feio, sempre perfeito, é uma obra-prima.
Vale!