Eu me mudara a dois anos. O bairro do Caxingui, mundo dos espaços sem fim, fora trocado pela Vila Sônia, terra de ruas asfaltadas, de casas sombrias e de vielas misteriosas. Agora, em 1974, o Eden se descortinava para mim. Vivi alguns bons anos até agora, 2014, mas 1974 foi um ano muito especial. O ano em que eu descobri quem eu era e quem eu seria.
E tudo se liga à vaidade. Eu havia descoberto ser um menino bonito. Mais que tudo, eu pensava ser já um adolescente. Não era. Continuava uma criança. Foi em 74 que eu começara a andar com o peito estufado. Finalmente a bronquite se fora e agora meu peito, inimigo desde sempre, se tornara meu aliado. Eu me sentia forte.
Minha mãe resolver reformar o jardim de casa e contratara um jardineiro. Foi na casa desse homem, ao ir com ela tratar do trabalho, casa enorme, cheia de cantos úmidos e plantas esquisitas, que eu vira uma pilha de gibis antigos. Nasceu aí a primeira flor desse Eden. A cor das capas, o formato grande, os títulos chamativos, tudo nessas capas me seduziu. E por uma dessas coincidências descobri que meu amigo José Juscelino tinha uma enorme coleção de gibis. Fizemos uma troca, meus gibis da Abril por esses gibis da Ebal. A troca foi feita em casa. Pronto, eu começava minha coleção de Superman, Tarzan, Batman e Homem Aranha. Por todo esse ano, nas segundas de manhã, haveria o ritual de ir à banca do Negrito, onde cheio de ansiedade feliz, eu compraria meus gibis semanais. Nunca mais, até hoje, eu sentiria tanta alegria ao gastar dinheiro. Nenhuma compra me traria tanta euforia. Ao voltar pra casa, as novas revistas na mão, sentindo o cheiro da tinta e do papel, eu iria ler duas, três vezes todas as 64 páginas.
O paraíso não pode ser feito só de uma flor. Nesse ano eu descobri o rock também. Certo que desde sempre eu amava os Monkees. Certo que fora ninado ao som dos Beatles e dos Stones. Mas foi em 1974 que eu entendera que havia uma coisa chamada rock e que esse tipo de som me deixava estranhamente excitado.
Meu pai tinha um restaurante em Pinheiros e aos sábados eu ia até lá, com meu irmão e minha mãe. Meu pai nos comprava carrinhos da Matchbox, umas maravilhas de ferro pesado e rodinhas macias de borracha. Mas meu interesse havia mudado e eu queria discos. O primeiro foi um single do Elton John. Goodbye Yellow Brick Road. Eu já era um romântico sonhador. Meu irmão, um moleque de 9 anos, comprou Alice Cooper. Nosso caminhos se definiam aí.
Uma coisa muito legal desse tempo é que se ouvia rádio. E ao ouvir rádio, AM, voce era exposto a muita informação. Não existia a segmentação, então voce era obrigado a escutar um pouco de tudo. Sábados de manhã ouvíamos a rádio Difusora. E nela tocava soul, funk, mpb e rock. O que a gente queria era ouvir Bowie, Elton, Paul e Bad Company, mas esperando que tocasse tudo isso éramos obrigados a ouvir Harold Melvin, War, Barry White ou Jackson Five. Isso aumentou nossos limites. Com a segmentação de hoje um cara que goste de Death Metal vai ouvir só isso e um outro que goste de Dance ouvirá só Dance. Chato e pobre...
Na Excelsior tocava outro play list. Slade, Suzi Quatro, Wings e Shariff Dean. E os bregas de então, Steve MacLean, Roberto Carlos, Benito di Paula e Martinho da Vila. A gente ouvia tudo. Sorrow de Bowie à Onde a Vaca Vai. Odair José e Ronnie Von. Ganhamos um gravador Aiko. Era uma festa! Ainda lembro da primeira música que gravei do rádio: You Won`t See Me, versão com Anne Murray. Houve uma gloriosa manhã em que acordei com Flores Astrais dos Secos e Molhados tocando alto em toda a casa. Era minha mãe. Ela gostava muito dessa canção.
Feira livre, lojas de departamentos, mercado municipal, Ceasa, nada de Shopping Center.
A TV tinha só cinco canais. Era o bastante. Na Record tinha um monte de desenhos toda a tarde. Kimba, Super Dínamo, Fantomas, Samurai Kid. Na Bandeirantes tinha um cara chamado Titio Molina. Josie e as Gatinhas, Herculóides, Moby Dick e Shazam. Archies. Na Globo, claro, minha mãe via novelas. O mundo parecia ver novelas. Eu via as 5 horas Os Mozzarelas, Os Caretas, Push Cassidy e O Poderoso Cachorrão. Eram modernetes e prafrentex. Mary Tyler Moore estranhamente eu já amava. Porque? Eu nada entendia mas gostava de ver. A voz da dubladora era linda! Hoje sei que Mary foi um marco na TV americana, mas naquele tempo que sabia eu?
Tinha muito enlatado na TV. Meu pai adorava Cannon e San Francisco Urgente. Foi a época de Columbo, Kojak, MacCloud. Grande era da TV ( uma das várias eras de ouro ). Estranho que as duas melhores nunca passaram aqui: All In The Family e Monty Python. Ainda tinha Os Waltons, Vila Sésamo e Persuaders. E umas esquisitas séries inglesas de sci-fi. O Mundo do Amanhã, Espaço 2020...E longas novelas da BBC, lembro de Jane Austen na Globo as quatro da tarde.
A Copa da Alemanha foi nesse ano. E eu e meu irmão jogávamos bola no quintal. Alguém falou que aquele que não teve um quintal nunca foi feliz. Além da bola a gente fazia guerras memoráveis. Era um mundo completo. Como completa era a escola. Minha velha escola de corredores escuros, salas com chão de madeira que rangia, carteiras pesadas e professores sérios. As meninas de saias curtas, os meninos cheios de caspa e cheiros ruins. Handball era dado todo dia. Tinha fanfarra. E amigos. Amigos que eu adorava, brigava e fazia as pazes. Cabeludos como eu, sujos como eu, desleixados como eu, sem noção, burros, vadios, andarilhos, como eu. O mundo era uma enorme rua. Com cães no cio, restos de feira, vendedores de livros, bikes enfeitadas e moças de bunda grande. Os caras com seus imensos sapatos de salto alto, calças cor de rosa, boca larga e camisa listrada justa. O peito nú com correntes de ouro. E as moças de saia curta, sandálias ou botas enormes, blusas de costas nuas e cabelos longos, ondulados, soltos. Cheiros fortes de perfume doce, de shampoo, de sabonete. E muito cigarro, muito whisky, feijoadas, dobradinhas, virados, bife a cavalo, frango a passarinho. Risoto a Catarina.
Eu via tudo. Não sabia que o cinema tinha O Poderoso Chefão 2, Chinatown e American Graffitti. Não sabia que o Oscar fora disputado por Jack Nicholson, Al Pacino, Robert Redford e Jack Lemmon. Mas queria ver Terremoto, Inferno na Torre e Banzé no Oeste. Nada sabia de Roxy Music, Kraftwerk ou de Lou Reed, mas já ouvia Rebel Rebel. 1974 terminou na praia, onde me apaixonei pela primeira vez. Emerson ganhou o campeonato, Zico era a promessa e o governo de Geisel nos fazia crer que o Brasil era o melhor país do mundo. Não era.
Mas a rua Dr. Silvio Dante Bertachi era a melhor das ruas. Recordo tudo isso, 40 anos depois, e sei que o que me resta de melhor está vivo e vindo daí. 1974 nunca morreu. E se tenho saudade, que bom, é porque foi o que foi. Uma afirmação, um abrir de olhos, um aceitar e um grande coração.
E tudo se liga à vaidade. Eu havia descoberto ser um menino bonito. Mais que tudo, eu pensava ser já um adolescente. Não era. Continuava uma criança. Foi em 74 que eu começara a andar com o peito estufado. Finalmente a bronquite se fora e agora meu peito, inimigo desde sempre, se tornara meu aliado. Eu me sentia forte.
Minha mãe resolver reformar o jardim de casa e contratara um jardineiro. Foi na casa desse homem, ao ir com ela tratar do trabalho, casa enorme, cheia de cantos úmidos e plantas esquisitas, que eu vira uma pilha de gibis antigos. Nasceu aí a primeira flor desse Eden. A cor das capas, o formato grande, os títulos chamativos, tudo nessas capas me seduziu. E por uma dessas coincidências descobri que meu amigo José Juscelino tinha uma enorme coleção de gibis. Fizemos uma troca, meus gibis da Abril por esses gibis da Ebal. A troca foi feita em casa. Pronto, eu começava minha coleção de Superman, Tarzan, Batman e Homem Aranha. Por todo esse ano, nas segundas de manhã, haveria o ritual de ir à banca do Negrito, onde cheio de ansiedade feliz, eu compraria meus gibis semanais. Nunca mais, até hoje, eu sentiria tanta alegria ao gastar dinheiro. Nenhuma compra me traria tanta euforia. Ao voltar pra casa, as novas revistas na mão, sentindo o cheiro da tinta e do papel, eu iria ler duas, três vezes todas as 64 páginas.
O paraíso não pode ser feito só de uma flor. Nesse ano eu descobri o rock também. Certo que desde sempre eu amava os Monkees. Certo que fora ninado ao som dos Beatles e dos Stones. Mas foi em 1974 que eu entendera que havia uma coisa chamada rock e que esse tipo de som me deixava estranhamente excitado.
Meu pai tinha um restaurante em Pinheiros e aos sábados eu ia até lá, com meu irmão e minha mãe. Meu pai nos comprava carrinhos da Matchbox, umas maravilhas de ferro pesado e rodinhas macias de borracha. Mas meu interesse havia mudado e eu queria discos. O primeiro foi um single do Elton John. Goodbye Yellow Brick Road. Eu já era um romântico sonhador. Meu irmão, um moleque de 9 anos, comprou Alice Cooper. Nosso caminhos se definiam aí.
Uma coisa muito legal desse tempo é que se ouvia rádio. E ao ouvir rádio, AM, voce era exposto a muita informação. Não existia a segmentação, então voce era obrigado a escutar um pouco de tudo. Sábados de manhã ouvíamos a rádio Difusora. E nela tocava soul, funk, mpb e rock. O que a gente queria era ouvir Bowie, Elton, Paul e Bad Company, mas esperando que tocasse tudo isso éramos obrigados a ouvir Harold Melvin, War, Barry White ou Jackson Five. Isso aumentou nossos limites. Com a segmentação de hoje um cara que goste de Death Metal vai ouvir só isso e um outro que goste de Dance ouvirá só Dance. Chato e pobre...
Na Excelsior tocava outro play list. Slade, Suzi Quatro, Wings e Shariff Dean. E os bregas de então, Steve MacLean, Roberto Carlos, Benito di Paula e Martinho da Vila. A gente ouvia tudo. Sorrow de Bowie à Onde a Vaca Vai. Odair José e Ronnie Von. Ganhamos um gravador Aiko. Era uma festa! Ainda lembro da primeira música que gravei do rádio: You Won`t See Me, versão com Anne Murray. Houve uma gloriosa manhã em que acordei com Flores Astrais dos Secos e Molhados tocando alto em toda a casa. Era minha mãe. Ela gostava muito dessa canção.
Feira livre, lojas de departamentos, mercado municipal, Ceasa, nada de Shopping Center.
A TV tinha só cinco canais. Era o bastante. Na Record tinha um monte de desenhos toda a tarde. Kimba, Super Dínamo, Fantomas, Samurai Kid. Na Bandeirantes tinha um cara chamado Titio Molina. Josie e as Gatinhas, Herculóides, Moby Dick e Shazam. Archies. Na Globo, claro, minha mãe via novelas. O mundo parecia ver novelas. Eu via as 5 horas Os Mozzarelas, Os Caretas, Push Cassidy e O Poderoso Cachorrão. Eram modernetes e prafrentex. Mary Tyler Moore estranhamente eu já amava. Porque? Eu nada entendia mas gostava de ver. A voz da dubladora era linda! Hoje sei que Mary foi um marco na TV americana, mas naquele tempo que sabia eu?
Tinha muito enlatado na TV. Meu pai adorava Cannon e San Francisco Urgente. Foi a época de Columbo, Kojak, MacCloud. Grande era da TV ( uma das várias eras de ouro ). Estranho que as duas melhores nunca passaram aqui: All In The Family e Monty Python. Ainda tinha Os Waltons, Vila Sésamo e Persuaders. E umas esquisitas séries inglesas de sci-fi. O Mundo do Amanhã, Espaço 2020...E longas novelas da BBC, lembro de Jane Austen na Globo as quatro da tarde.
A Copa da Alemanha foi nesse ano. E eu e meu irmão jogávamos bola no quintal. Alguém falou que aquele que não teve um quintal nunca foi feliz. Além da bola a gente fazia guerras memoráveis. Era um mundo completo. Como completa era a escola. Minha velha escola de corredores escuros, salas com chão de madeira que rangia, carteiras pesadas e professores sérios. As meninas de saias curtas, os meninos cheios de caspa e cheiros ruins. Handball era dado todo dia. Tinha fanfarra. E amigos. Amigos que eu adorava, brigava e fazia as pazes. Cabeludos como eu, sujos como eu, desleixados como eu, sem noção, burros, vadios, andarilhos, como eu. O mundo era uma enorme rua. Com cães no cio, restos de feira, vendedores de livros, bikes enfeitadas e moças de bunda grande. Os caras com seus imensos sapatos de salto alto, calças cor de rosa, boca larga e camisa listrada justa. O peito nú com correntes de ouro. E as moças de saia curta, sandálias ou botas enormes, blusas de costas nuas e cabelos longos, ondulados, soltos. Cheiros fortes de perfume doce, de shampoo, de sabonete. E muito cigarro, muito whisky, feijoadas, dobradinhas, virados, bife a cavalo, frango a passarinho. Risoto a Catarina.
Eu via tudo. Não sabia que o cinema tinha O Poderoso Chefão 2, Chinatown e American Graffitti. Não sabia que o Oscar fora disputado por Jack Nicholson, Al Pacino, Robert Redford e Jack Lemmon. Mas queria ver Terremoto, Inferno na Torre e Banzé no Oeste. Nada sabia de Roxy Music, Kraftwerk ou de Lou Reed, mas já ouvia Rebel Rebel. 1974 terminou na praia, onde me apaixonei pela primeira vez. Emerson ganhou o campeonato, Zico era a promessa e o governo de Geisel nos fazia crer que o Brasil era o melhor país do mundo. Não era.
Mas a rua Dr. Silvio Dante Bertachi era a melhor das ruas. Recordo tudo isso, 40 anos depois, e sei que o que me resta de melhor está vivo e vindo daí. 1974 nunca morreu. E se tenho saudade, que bom, é porque foi o que foi. Uma afirmação, um abrir de olhos, um aceitar e um grande coração.