Dizia Kierkegaard que o nível mais baixo da existência seria aquele de Don Juan, mundo que o Don Giovanni de Mozart exibe a perfeição. Nesse mundo tudo o que tem valor está ligado a sedução, a conquista e ao desejo de possuir. A pessoa viveria numa espécie de galeria de espelhos, onde ela se analisa todo o tempo e examinaria os outros sem parar de se comparar a eles. Um mundo de superficie, a vida como imagem em movimento, sem substãncia e sem chance de perenidade. Nesse mundo a nossa função passa a ser unicamente a de seduzir e ser seduzido. Mais nada. Pior que isso, após o ato da conquista torna-se impossível usufruir do que se tem. O objetivo é capturar, não se consegue apreciar aquilo que já faz parte do passado, da coisa que já foi conseguida. A posse é um desejo ilusório, pois ter se transforma em perder. Comapra-se e se paga um preço, o vazio entediante de se querer, sempre, aquilo que não se tem.
Kierkegaard escreveu isso no meio do século XIX. E advertia que nosso mundo caminhava para a preponderância absoluta de Juans e Giovannis. Um pouco acima deles estaria o tipo Fausto, aquele que não ansia por ter, mas por saber, tudo. Esse vive na dúvida pois sabe que o querer, o ter e o saber possuem limites intransponiveis. A vantagem de Fausto sobre Juan é conhecer o desespero transformador, e não apenas, como Juan, o tédio asfixiante. Fausto quer transformar sua vida, Juan não. Ele é incapaz de criar algo de novo. É uma vítima. Fausto nunca é vitima, ele é seu carrasco.
Me desculpem se me abstenho de falar sobre o tipo mais elevado. Entramos no mundo do símbolo e da religião e esse mundo está hoje tão enterrado dentro de nós, tão disfarçado em sintoma e em auto-mutilamento, que sua lingua seria tema para mais de uma biblioteca. A prponderãncia da razão, utilitária, simplificadora e comum a todos, fez com que a lingua da alma e do instinto nos fosse cada vez mais estranha. O que posso dizer com certeza absoluta, e essa é das poucas certezas absolutas que tenho, é que apenas a razão não pode nos dar motivo para viver. O que nos leva adiante, mesmo com a consciência do fim da vida, do mal e da injustiça, é aquilo que Jung chamava de inconsciente, o imenso universo vivo e atuante de símbolos, instintos, motivações e sonhos. Mundo que nos traz a ideia de criação, de atemporalidade, de comunhão entre o todo e nós, de beleza. Chamar esse universo, que é só meu e é de todos ao mesmo tempo, de Céu, de Inconsciente, de Instinto ou de Vida, tanto faz. Ele é o que nos guia e nos perde, nos dá dignidade de coisa viva e criadora, nos ajuda a querer persistir. Perder essa conexão é a morte em vida. É o mundo de Don Juan. Espelho e imagem, vaidade e posse.
Uma parábola que agora se faz clara:
Quando Adão e Eva perdem o Eden, o que eles perdem? O que eles ganham? Passam a ter de trabalhar, passam a ter consciência da morte, passam a sofrer. Ou seja, tornam-se racionais e criam a divisão interna da mente. Agora sabem o que devem ser. Nunca o que são.