PERDEMOS AS RUAS E AS JANELAS ESTÃO VAZIAS

   Cada época tem sua preocupação. Se essa preocupação já foi politica, religiosa e artísitica, hoje ela é social. Social não no sentido politico, não como ideia de futuro, mas antes como sintoma. Violência e solidão. Essas as duas grandes questões do tempo. Violência sem tática, sem ideologia e sem consequência, ato gratuito. Terror e absurdo. E a solidão verbosa de redes sociais e de ruas desertas de gente e cheias de coisas.
   Ando com um amigo nas ruas de um bairro que conheço desde 1973. É domingo de noite e são apenas oito horas. Faz bom tempo. Andamos por cerca de uma hora entre sobrados e praças. De repente percebo que não cruzamos por uma só pessoa. Chegamos ao extremo absoluto do nascimento de nossa cultura. Gregos viviam na rua e na praça. O inferno seria o exilio. Casas só para dormir. Hoje vivemos esse inferno. Nossa vida se faz entre paredes. ( Domingo a noite era hora de gente se despedindo no portão. De senhoras na janela olhando a rua e falando: Boa Noite!, crianças, eu, jogando bola e reclamando de ter de entrar, namorados na praça ). Pior: não escutamos uma só voz vinda das janelas das casas. Nenhuma. Luto? Terá morrido Roberto Carlos? Ninguém discute, briga, comenta a TV, ri. Nada. Silêncio quebrado por um ou outro carro que passa.
   Há gente no shopping center. Muitas. Houve um tempo de muita gente na praça e na rua. Lugares nossos, grátis, de familia. Agora nosso lugar não é nosso, é dos lojistas. O centro de nossa cidadania é um centro comercial. Se em 1973 me falassem que nosso futuro residia entre mercados e lojas de sapatos eu daria risada. Não andamos mais pelas ruas aos olhos dos vizinhos e de nossas mães. Andamos em galerias comerciais aos olhos dos seguranças e de câmeras de video. Liberdade? Onde?
   Bem, as ruas da Vila Madalena talvez estejam cheias. Ou a Paulista. Mas elas não são também um tipo de shopping? Galerias ao ar livre onde andamos entre apelos por consumo de cerveja e de comidinhas? Locais onde temos de ir para "viver"? Liberdade? O que é ser livre hoje?
   Falamos então de outras coisas. Uma delas é a relação do cara inquieto com o mundo atual. Fácil para mim perceber dois tipos de "consumidor" ou "apreciador" de arte. Tem aquele que só assiste filmes de agora e ouve bandas novas. Esse é o consumidor de produtos frescos. O passado é morto para ele e o futuro coisa de nenhuma preocupação. Ele engole apenas o pãozinho quente, o iogurte na validade e nada quer com conhaque. Sua rebeldia é aquela dentro do agora. Nos conformes. Da época. O cara inquieto critica sempre o agora. Fato fácil de verificar: todo artista que mereça consideração, desde que o mundo é mundo, tem uma relação crítica profunda com o agora. Ele nunca nasceu na hora certa. Pensa no passado e deseja o futuro. Daí sua afinidade com livros obscuros, filmes antigos e músicos de raiz. Ele firma os pés nos tesouros guardados e tenta dar o salto ao futuro, pulando o agora. Creia: Um homem envolvido com o aqui e agora cria produtos descartáveis. O tempo os engole. Sua criação, sua mente se deixa rodopiar nas miríades de musas apelativas de 2013. No passado selecionado ele acha o ponto firme, fora do agora, para se criar.
   Amizade é um tesouro. Cada amigo é um mundo. Tenho amigos que me fazem virar poeta grego, tenho amigos que me fazem ser palhaço. Outros me dão o dom da familia e alguns trazem-me filosofia.
   Dessa conversa nas ruas ficou uma pergunta: Porque um bom filme faz com que eu repita, sem ter consciência, todo o gesto e modo de meu pai vendo o mesmo filme? É possível ser inteiro sem a reconciliação com sua origem? De onde nascemos?
   A rua continua vazia.