Tenho um professor que estudou em Cambridge. E em meio a aula ele fala da imensa variedade de tipos excêntricos que continuam a aflorar na universidade. Ao contrário de Oxford, muito mais "comum", Cambridge sempre foi famosa por atrair os tipos mais desajustados. Estranho o efeito que essa aula causou em mim. Um alivio súbito, um desafogo.
Há uma tendência em mim, imposta pelo meio, óbvio, em me fazer invisível. Adotar um molde e passar então a crer na verdade desse molde. Desse modo, erro sempre ao tentar ser integralmente aquilo que me é sutilmente imposto. Lembro que meu terapeuta ( sim, já tive um terapeuta assim como um pai de santo ), dizia que o que nos outros normalmente se passa inconscientemente, em mim era sempre analisado. Meu vicio era o de analisar demais. Quando voce penetra nesse campo ( alô freudianos: penetra! ), a razão, essa ferramenta que teme tudo o que é vago e se ressente do que lhe escapa, passa a nomear aquilo que voce é. Assim passo a ser um rótulo, seja um dandy, um romantico, um moderno ou até mesmo um irracional. O rótulo se faz um alivio: "Óh! Eis o que sou!" Triste armadilha, sempre que me vejo rotulado entro numa zona cinzenta onde nada acontece e os dias parecem ser todos iguais. Um tipo de depressão das possibilidades, a morte da minha "esquisitice".
Mas quando o professor fala dos cambridgeanos, e é claro que não estou me tornando um deles, não peguei emprestado mais esse rótulo, vejo diante de mim as imensas possibilidades de comportamento e de pensamento que existem na fauna humana. Porque seguir uma coerência e para que imaginar um perfil comportamental? A vida segue irrefletida e há uma multidão de seres sem rótulo que tentam e às vezes conseguem viver. Pessoas ilógicas, incongruentes, contraditórias, impulsivas e criativas. Pessoas que na verdade têm como único compromisso o erro, natureza e fim da vida. Errar em sua acepção original, que seja, tentar e nunca chegar a conclusão. Errar é viver, pois o acerto final, a conclusão é a morte, seja ela um fim-zero de tudo, ou um portal, conclusão e recomeço. Na vida que é sempre um erro e jamais uma certeza, tudo é tentado, tudo é modificado e reside nessa confusão de tolices e de quimeras a graça e a doçura de se estar aqui. A vida se escreve sem revisão, sem plano, sem autor. Erros sobre erros, acertos que nunca são conclusões e sim entradas para novas tentativas.
Ando pelas ruas, flanando, e observo os cinco ou seis tipos de gente que há ( aparentemente ): o moço de camisa xadrez e barba, o perfumadinho de polo, o careca de óculos e cafés, o funkeiro de calça skinny, o bonitão- bermudão e chinelo e o bombado de camiseta justa com frase gracinha. Muuuuita gente segue um desses perfis e uma das coisas mais chatas deste mundo que parece tudo permitir é a de que num show de rock ou no cinema, nunca tantos foram tão iguais. O moço do xadrez gosta da esquerda e da Vila, tenta ser bem brasileiro; o do polo ama New York e adora carros; o careca tenta ser liberal e vê todos os filmes "sérios" da Escandinávia; o funkeiro ri e só pensa em zuar; o do bermudão está sempre nas baladas e tem várias mulheres e o bombado faz pose e tem sempre uma turma. É só isso? Pior que muuuuuitas vezes é. Passivamente, sem perceber, pois todos se acham únicos, o molde se ajusta e o cara começa a falar e a pensar como aquele modelo de "homem". O tipo físico fazendo-ditando o espirito. Veja: Quantos gordos engraçados voce conhece? Quantos Johnny Depp ?
O que essa aula Cambridge me deu é a certeza de que mesmo o careca de óculos que só fala em Hannah Arendt ou o barbudinho que só fala em cerveja, têm dentro de si uma vontade imensa de jogar essa bosta toda no lixo e se deixar errar. Rir de Hannah e deixar a cerveja ficar aguada. Duvidar de sua turma, ser incongruente, aloprar. Afinal, este professor é um surfista que dá aulas de ética e fala sânscrito. Irrotulável.