SEXTA DA PAIXÃO, VAMOS AO SHOPPING COMPRAR UM CELULAR NOVO?

   Na TV Fátima Bernardes balança as cadeiras ao som do pagode. O mundo não pode parar, afinal, servos que somos do trabalho e do consumo, obedecemos às ordens do relógio e do calendário: Tempo de trabalhar, Tempo de Gastar. E isso é tudo. A vida resumida a dois atos que se complementam, o resto pode ser chamado de "sonho", "irrazão" ou "saudosismo".
   Antes desse tempo havia o calendário da religião. Éramos então servos da igreja e nosso tempo era por ela ditado. Hoje seria o dia do arrependimento, da dor, do silêncio. Pouco me importa se esse calendário era melhor ou pior, o fato é que não podemos mais ter um dia de recolhimento e de silêncio. É proibido. Penso outras coisas...
   Jovens "rebeldes" hoje irão gastar seu dinheiro em cerveja e no Lolla. Rebeldia né? Gastar mil reais, consumir bandas pop e posar de anti-capitalista. No dia em que era antes proibido ouvir música. Mais que "triste", o antigo mundo cristão condenava o consumo. O movimento ateu está intimamente ligado a "felicidade" de gastar. Situação insustentável de Roma: protestantes jamais tiveram problemas com o capital, católicos lidam com esse problema: como cultuar um Deus pobre e despojado e acumular bens ao mesmo tempo? 
   Houve o momento em que o centro de uma cidade era a catedral. Depois passou a ser o palácio do rei. No século XIX passa a ser o banco e a bolsa de valores. Hoje é o shopping center. Da catedral ao shopping center se fez um trajeto puramente racional. O trabalho e o consumo são os prazeres possíveis da razão. Sexta-Feira Santa não pode ser recolhimento. Tem de se gastar.
   Não creio, como Unamuno, em fé sem dúvida. Um ateu que não vacila ou um religioso que não faz exames de consciência nada valem. Estão mortos. ( E lembro da frase dita por Bob Dylan em 1965: Voces estão ocupados em morrer, eu me ocupo em nascer! ), bem, já fui um ateu radical, hoje sou um homem ocupado em tentar nascer. Não consigo crer. Não consigo descrer. É uma posição terrível. Conheço os dois mundos: O Ressentimento perante o crente, a raiva inconfessável que o ateu sente perante a certeza contente do crente, e o não querer discutir nada, o autoritarismo do carola. Me ocupo em nascer: Não me preocupo em conhecer Deus ou em saber sua não-existência. Procuro conhecer as coisas que são o que são. Tento não me fechar ao novo. E esse novo pode vir de 500 a/c ou de Toledo em 1600.  Questiono. E desprezo todo homem de certezas e de verdades.
   Um oriental não compreende como é possível um deus vir à Terra para se deixar matar. Porque ele não saiu da cruz e matou seus rivais? Eu também não sei. E pouco me importo em saber. O que me interessa é o fato de SER. Foi assim. Tendo Cristo existido ou não, foi assim. E é esse auto-sacrificio que chamamos de AMOR.  Jesus na cruz nega seu ego, sua máscara, e se dá em negação de si. Esse é um conceito oriental. Jesus nega a ilusão de seu Eu e se funde à vida morrendo. Surge na Páscoa revivido, livre de ilusão, unido ao Todo.  Até aí eu posso entender com minha razão. Daí para a frente preciso ter a humildade de confessar: Não sei, frase tão dificil de ser dita por um inteligentinho, Não sei. A razão entende o que é da razão. E o que não é de sua alçada que tenha a humildade de dizer sua incompetência.
   É Sexta-Feira Santa. Eu vou ouvir música, vou rir, vou gastar dinheiro. Mas pensem no que este dia já foi, no que poderia ser e naquilo que nos foi ROUBADO.  O recolhimento, a confissão, a negação, a fé.