DE ONDE NASCEM OS SONHOS

   Foi tema de uma aula, hoje. Eu a reconto:
   - O João está mal que vai morrer....
   - Vamos visitar, ver o que ele tem a dizer.
   João está à cama. Ao seu redor alguns parentes. Pela janela aberta ele pode ver o alto das casas da sua rua. Uma mosca voa pelo quarto. A dor é dura. João quer falar. Fala. Pouco se pode saber do que ele fala. Mas o fato é que ele falou. Enquanto isso, na sala, sente-se saudade do João que ainda não foi. Sua última sentença foi esta: Me fui como vim. Proteja meus filhos.
   Faz-se o caminho então. João nasceu em familia. Como todos, veio de mãe em meio a um parto. Como todos, foi criança de bairro e brincou. Fez parte de uma escola, de uma igreja, de uma vila. Cresceu e fez sentido. E morreu como nasceu, em meio a gente, tentando dizer a conclusão da vida, fechando o círculo. 
   ( Sociedades decadentes nunca sabem o que fazer com seus mortos. Pior, nunca sabem simbolizar a morte. Sociedades decadentes dizem que a morte é a morte que é a morte como a vida é apenas viver. Sociedades decadentes pegam seus moribundos e os arrancam de nossa visão. E jogam seus corpos numa vala que significa esquecimento rápido. Numa sociedade podre o esquecimento se deseja mas ele nunca vem... )
   Eu não sabia que o hai kai nasceu como poema da hora de morrer. O hai kai ( ou hai ku ) é a sentença final que um homem deixa como herança aos seus. É a sentença que simboliza aquilo que ele foi. E será. 
   Havia no Japão um pobre desgraçado. Inútil. Numa noite de neve terrível, num celeiro escondido, só, ele morreu. Foi morto pela neve que caía.  De manhã acharam seu corpo e na mão um papel. Nele se lia:
    " Há que dar graças
      Essa neve veio do Céu."
   
   Nossa arte, pobre, tem apenas um sentido: Buscar um sentido. Nossos artistas são como cegos que tateiam procurando algo que lhes dê esperança. Um escritor escreve sabendo que seu texto será sem sentido. O mesmo sente um músico ou um pintor. 

  Se passaram séculos. Mas nosso modelo mítico de felicidade continua habitando o tempo clássico. Seja Grécia, Roma ou Jerusalém.
   Voce pensa em democracia ou em Julio César. Voce pensa em Platão ou em Hércules. Se voce é crente pensa em Jesus, se é ateu pensa em Marco Aurélio. Nossos modelos são Aquiles ou Heitor, Helena ou Afrodite, Sêneca e Ovidio. Sonhando com musas, deuses, ou guerras, ou heróis ou o nascimento da ciência, da filosofia e do direito. Sonhando.