ANNA KARENINA, FILME DE JOE WRIGHT

   Presos num teatro. Anna, Vronsky, todos vivem no palco dos costumes, das convenções com eventuais escapadas para os sujos bastidores. Menos Lievin, desajeitado personagem "fora do palco". Tom Stoppard, o roteirista, que é um dos mais importantes autores de teatro de hoje, entendeu bem onde vive o centro da coisa. Joe Wright, com absoluto dominio da técnica de cinema, teve o talento de transpor essa ideia para a tela. Em seu quarto filme, o diretor inglês prova ser o melhor dotado dos diretores em atividade. Sabe fazer cinema, fala com cortes, movimentos de câmera, cores. Tudo em sua obra tem a marca de um diretor que sabe o que quer. Nada ao acaso, nada gratuito. Em termos de know-how sua arte é uma aula. Os primeiros trinta minutos deste filme são absolutamente geniais. Ophuls ou Powell ficariam felizes em ver o que Wright faz. Depois o filme cai, não por erro de seu diretor ou de seu bom elenco, mas por ser Anna Karenina obra infilmável. Diante da cordilheira intransponível que é a obra-prima de Tolstoi, o filme até que se sai muito bem. Lindo de se ver, inteligente em suas decisões, tentando não tornar a trama superficial,( risco de toda adaptação de alta literatura para o cinema ), é este, de tudo que vi, o melhor filme de 2012. Tão melhor que provávelmente terá pouco público. É um filme que exige atenção, sensibilidade e bom gosto, tudo o que o público frequentador de cinema não tem.
   Anna morre por ser uma tola. Muita gente diz isso e tendo a concordar. O filme foge dessa conclusão. Um dos méritos da obra de cinema é a de que ela não vê Anna como eu vejo. A leitura de Stoppard é diferente da minha. E mesmo assim gostei muito do filme. Wright e Stoppard modernizam um pouco a personagem. Ela é quase uma mulher de 2012. Presa nas redes de 1880. Mas será apenas o moralismo sexual o assassino de Anna Karenina? Fosse escrito hoje, como Anna se salvaria de sua falência afetiva? Trabalhando e sendo uma "mulher livre"? Quase no fim do filme tive esse insight: Estamos tão aferrados a nossos costumes de hoje que pensamos automáticamente no trabalho como cura e liberdade. Por outro lado: O que uma mulher faria hoje para ser estigmatizada como Anna? Qual o pecado de 2012?
   A visão de Tolstoi no livro, que não sei se fica clara no filme, é a de que o amor puramente erótico leva sempre a destruição. Anna, o amante e o marido, estão presos em seus desejos. O marido em seu mundo de poder e de politica, Anna e Vronsky em seu desejo um pelo outro. Esse tipo de amor levando necessariamente ao fim, seja dele mesmo, seja da familia.
   Muito do amor que tenho pelo livro, um dos dois ou três que mais me emocionaram na vida, se deve ao personagem de Lievin, a voz de Tolstoi no livro. Perdido, rico, com sérias dúvidas sobre religião e sobre o sentido das coisas, Lievin tenta se livrar da angústia no trabalho. Mas não no puro trabalho "acumulativo", ele vive um tipo de comunismo ingênuo, usa as mãos para trabalhar, tenta ser um de seus empregados. Mas isso não o alivia. Então, em páginas que guardo como um tesouro, ele descobre que o amor só pode ser feliz se for dado a todo o universo. Lievin ama Kitty, mas o amor dos dois sobrevive porque se esparrama ao seu redor. Amando Kitty ele ama a vida, e amando a vida ele passa a trabalhar pela e para a vida. Tolstoi viveu isso e após a grande crise que sofreu em meio a redação de Anna Karenina, ele cria um tipo de cristianismo-socialista-franciscano-proto hippie que fez dele uma pessoa perseguida na Rússia e ao mesmo tempo venerada pelo mundo inteiro. Em 1900, 1905, intelectuais viajavam ao interior da Rússia para ver o mestre. Como mostra o recente filme sobre seus anos finais, sua fortuna foi dada aos camponeses.
   Lievin aqui é feito por um ator que tem o rosto e a voz de Lievin. escolheram muito bem. Mas puxa! Eu queria mais Lievin, please! A cena final, quando ele vai falar a Kitty que teve uma ideia e pega o filho no colo é belíssima. Em meio a montes de cenas belas, é talvez a mais bela. Não esquecerei daquela folha verde com a água da chuva a escorrer...
   Como não esquecerei a neve no trem, o campo sendo arado, a cena de reprovação no teatro, a corrida de cavalos....
   Termino este texto dizendo que é um prazer voltar a ver "um filme" feito em 2012. Um filme que é cinema. Feito de cortes, de cenários, de diálogos e de atores. Com ação e pensamento, com ideias e ideais. Coragem e extremo bom gosto. Nada de forçado, sem apelações. Sim, não é uma obra-prima, mas em tempo sem grandes filmes e sem grandes histórias, Anna Karenina e Joe Wright são uma grande esperança e um belo consolo.
   Que bom!