SOBRE A CASA DA JOÃO MOURA EM PINHEIROS

Voce olhava pelo portão alto e o que via?
Uma alameda ladeada por árvores altas que sombreavam o cascalho do chão. Depois um gramado e a casa que começava com uma escadaria de mármore branco e dava seu primeiro sinal em azulejos azuis e janelas de vidro colorido. Tudo ali era detalhe e a casa nos convidava a pensar e a ver. Formara gerações, histórias sendo vividas e pedindo para que as revivêssemos. Dava para se escutar as vozes das crianças que brincavam ao redor dos muros e a buzina de um Ford que passava sonolento pela rua.
Mas é hoje e o que importa é o que é visto neste momento. A casa quebrava a monotonia de ruas idênticas, descartáveis em sua procissão de prédios sujos, caixotes de concreto e sobradinhos aos pedaços. Ruas alinhadas ao acaso, postes intrusos e fios que embaralham a vista. Mas ao avistar aquele portão de ferro, alto e com a sombra de cipestres e pinheiros, voce parava e tinha o convite de reentrar numa narrativa. A casa existia, se afirmava como história, dizia das mãos que a fizeram e dos olhares que a acariciaram. A música risonha de suas tardes de sábado em que as crianças se sujavam no quintal e folgavam antes do banho na banheira rosa, e os chás da tarde em que a avó pensava nos chás de outro tempo. Missas de domingo e o leite entregue pela carroça com um cavalo negro. Nos quartos havia o som das tábuas do piso, elas rangiam e anunciavam os passos do pai de bigodes duros.
A rua se adormecia.
Hoje entre o lixo de papéis velhos e de carros sebentos, a casa sobrevivia lembrando a quem soubesse lembrar de que homens são uma história. Homens narram e quando deixam de narrar morrem. Mesmo que continuem a comer e a dormir, estão mortos. Homens sem história são carcaças. Um mecanismo de presentes sem fim, destruindo e fazendo, erguendo e desfazendo, esquecendo sem parar nunca de esquecer. As pessoas passam pela rua, agora, e não ficam. Suas vozes não permanecem. A casa permanecia. Nos lembrava de que alguma coisa deve perdurar. Testemunhas existem. Trazem a afirmação de que a vida agora poderia ser mais. Se a vida era mais sendo menos, ela agora poderia ser muito mais sendo um pouco menos. A casa cantava baixinho nas noites que de tão iluminadas destruíram as sombras.
Então agora eu olho o portão e o que vejo?
A alameda enlameada e as árvores como galinhas de granja que esperam a hora. Meus olhos percebem um monte de tijolos e mais nada. Tudo o que era contado se transformou em silêncio. A melancolia de histórias antigas estapeada e feita apreensão de novo decreto. O ar toma o espaço onde lembretes vicejavam. O cuidado de uma narrativa, agora violada. Marcas de rodas onde antes pés descalços se pertenciam.
O homem odeia a beleza porque ela o recorda seu triste fracasso. O fracasso humilhante de não saber ver. O homem que olhava e nada ouvia naquela casa, obteve sua suja vingança. Reduziu a nobreza à altura de sua insignificância. O caso não é mais o de não conseguirmos construir a beleza, a coisa piorou, e hoje não sabemos amar a beleza. Aquele monte de tijolos é como uma antiga princesa estuprada e caída numa rua qualquer. É como o riso de dentes podres de um rufião vingativo.
No lugar da casa me dizem que será feito um shopping center.
Ando lendo John Banville. Pode colocá-lo entre os três maiores autores vivos. Ele sente como eu.