A MELHOR DAS VOZES, OTIS REDDING

  Voce seguia uma ruazinha no meio do nada. E então encontrava uma casa branca, daquelas de madeira, bem caipira, ao lado de um terreno baldio. Dentro dessa casa se gravavam discos, era o estúdio da Stax. A cidade é Memphis, um dos centros racistas dos EUA, e é comum que se joguem pedras na casa, nas janelas, nos telhados. Os músicos são ofendidos ao sair de lá, principalmente os brancos que gravam com negros. É nesse clima de confronto, de atrito, que se gravaram alguns dos melhores discos da história.
   As vozes principais são as de Aretha Franklyn e de Otis Redding. Vozes cultivadas em igrejas, nas cerimônias onde se perde a razão e se grita Jesus! ou Hallelujah, sem parar. Vozes que sobem da terra e atingem o céu, vozes que falam de ódio, de dor e de orgulho. Mas qual o segredo do som?
   Há a guitarra de Steve Cropper, e Cropper era um caipira branco que tocava com esses negros. Os acordes que ele tira são de country, o sentimento é de blues. São comentários perfeitos para a voz de Otis. Steve seria idolatrado por gente como Keith, Harrison ou Clapton. Mas é da voz que eu quero falar.
   Otis canta quente. A voz, muito viril, não demonstra dor como Ray Charles, nem sexo como Marvin Gaye. Ela exala calma, sabedoria. Dos grandes astros da black music dos anos 60, e são dúzias, Otis é o que menos vendeu, mas foi aquele mais "respeitado" pelos colegas. Morto em 1968, num desastre de avião, ele só teve tempo de gravar por seis anos, e atingiu apenas uma vez o primeiro lugar. No dia em que ele morreu, Sittin'On, a mais linda de todas as canções, atingia o primeiro lugar.
   Mas antes disso ele fizera muito. Sua apresentação em 1967, no festival de Monterey, fora uma surpresa para os branquelos que não o conheciam. Shake é uma das maiores apresentações da história do pop. Otis não enlouquece como o The Who, não é ousado como Hendrix ( para citar outras atrações do festival ), ele é um "mestre". Não perde o controle, faz o que deseja fazer. É um homem no palco, os outros são crianças.
   Ouça aquilo que ele gravou em 1962. Pain in My Heart por exemplo, que foi regravada pelos Stones em 65. Se voce sentiu dor alguma vez vai se apaixonar pela forma como a voz de Otis diz tudo. Te aconselho a na sequencia atacar de THAT'S HOW STRONG MY LOVE IS, que os Stones também gravaram em 65. Se nos cinco primeiros segundos não vierem lágrimas aos seus olhos voce está morto e não sabe. E ainda há mais...Otis tem um repertório infindável... I'VE BEEN LOVING YOU TOO LONG TO STOP NOW talvez seja a melhor...como escolher? O cara tem uma versão de Satisfaction que é melhor que a original!
   Mas vamos a Sittin On.
   São os 3 minutos mais perfeitos da história ( não é uma opinião só minha ).
   Do som do mar, passamos ao embalo de um baixo, um piano de poucos acordes e a voz. A letra diz tudo, é filosofia de vida, poesia existencial das mais profundas. Ela tem frases que se gravam na mente e voce cantarola e se emociona... Experimente cantar com Otis, a voz bem alta, calma, sábia ( não existe canção mais sábia ). Eu nunca consegui cantá-la sem chorar. Não estou inventando, jamais a cantei sem que lágrimas molhassem meus olhos. São 3 minutos tão equilibrados, belos, criativos, de tamanha perfeição, que eles condensam tudo aquilo que o pop foi e pode ser.
   Nada no mundo é por acaso. Leio um artigo sobre Otis que diz que toda essa paz foi conseguida no "atrito" entre brancos e negros, orgulho e humilhação, soul music e country music. A oposição que dá a criação do novo. Sem essa luta não há vida que valha a pena.
   O filho de Bryan Ferry tem o nome de Otis. Van Morrison, Eric Burdon, Mick Jagger, Peter Gabriel, Steve Winwood, George Harrison, a lista de pessoas que foram tocadas ao escutar a voz de Otis pela primeira vez é longuíssima. Hoje ele é um tipo de pai da black music. Com Gaye e James Brown, ele forma a trindade do soul. Marvin sendo o espirito, Brown o pai e Otis a alma feita matéria.
  Crescer passa pela encruzilhada de uma rua em Memphis. Onde Steve Cropper tinha de correr dos caipiras que o xingavam, onde Duck Dunn andava disfarçado pra não apanhar, e onde Otis cantou algumas das mais refinadas e apuradas canções já cantadas. Poder ouvir tudo isso é como encontrar um tesouro. Ou melhor, saber que a vida é grande.