A ILUMINAÇÃO DA SIMPLICIDADE

   Acabei de assistir um filme: Sublime Tentação de William Wyler. Conta a história muito simples, de uma familia quaker. Nada de complexo há neste filme, nada. O que vemos é gente banal vivendo uma vida banal. Mas esse banal se reveste de encantos. Bem, não estou aqui para falar de mais um dos bons filmes de Wyler. Estou aqui para falar sobre a simplicidade.
   Eu, como filho de meu tempo, confesso que sou incapaz de compreender, ou pior, participar do que seja simples, puro, único. Numa aula de poesia junguiana confessei ser impossível para mim atingir o nivel de pureza que o poema analisado exigia. Porque?
   O professor fala de Baudelaire como um dos primeiros a perceber o fim da simplicidade, mas eu penso em Wordsworth. O fim da simplicidade se liga ao fim do mundo sólido. Quando, por volta de 1775, na Inglaterra, o progresso passa a "destruir" eternidades ( paisagens, modos de viver e depois valores ), a visão humana se torna fragmentária, os mais observadores se tornam caçadores do fugaz, seres que tentam salvar alguma coisa da voracidade do tempo que corre. Em um segundo estágio, a visão se faz desconfiada. O homem não crê mais naquilo que vê e passa a procurar o que está escondido nas coisas.
   O homem fragmento é o poeta do século XIX, o homem desconfiado é o do século XX, e hoje temos o homem que desistiu de olhar. Um ser exposto a tantas visões que se cansa, e deixa de observar. Bate os olhos e deixa de ver.
   Há pessoas, bastante século XX, que procuram o complicado em tudo. E que ao topar em algo simples tratam de complicá-lo, ou pior que isso, desvalorizá-lo. É como se a complicação fosse um valor. Uma peça de arte só poderia ser superior se fosse complexa, ininteligivel, múltipla. Essa situação cria dois tipos de "apreciadores de arte" bastante conhecidos: o chutador filosófico e o miope à vida.
   O chutador vê sentidos onde não há. Ele sempre explica as coisas, aumenta o alcance de peças que não possuem alcance algum. É incapaz de ver um filme por pura diversão, ou de se divertir com uma piada ou um cartoon. Só respeita o que é complexo. O miope é caso pior ainda. Esse já se tornou incapaz de perceber a simplicidade, ele a descarta sem a enxergar. Não faz conexões complexas, simplesmente nada percebe. Tudo para ele é tão complicado que ele meio que naufragou. Foge então do que lhe parece complexo e vive, que ironia, no mar da complicação. Óbvio que os dois vêem espelho em tudo. Toda obra lhes parece refletir seu "eu" ( um eu que eles desconhecem e pensam conhecer ). Quando encaram algo de puro, simples, direto, profundo, fogem sem entender nada. Percebem apenas que aquilo lhes parece infantil, comum, banal. Tolo engano. Mortal engano.
   O ser poético é aquele que ama apaixonadamente toda a simplicidade. Ele sente que o simples é superior, superior pelo fato de lhe parecer eterno, imortal, além da fugacidade de modas e tendências. Mas sua frustração vem do fato de que para atingir essa paz simples, esse nirvana do atemporal, ele deva utilizar caminhos complexos, fragmentados, hiper-racionais. Eis a contradição que cria a arte moderna.
   Assim temos Picasso tentando pintar como um selvagem, mas carregando em si toda a complexidade do modernismo. Temos poetas como Yeats, procurando a simplicidade nas tradições irlandesas, mas atingindo essa tradição com uma mente fragmentada, sofisticada, artistica. Fernando Pessoa, criando racionalmente um poeta do campo, e dando a esse poeta uma voz que se auto-analisa todo o tempo. Whitman, Pound, Drummond, Lorca, Rilke, todos procurando o simples, seja no passado, no futuro, no não-corporal ou na carne sólida. E todos sendo terrivelmente complexos nesse processo.
   Mas eles têm uma crucial vantagem sobre o mero vivente da época. Sentiram a iluminação do atemporal. Um momento em que souberam do sabor da simplicidade. E se enamoraram desse instante. E deram a essa simplicidade, que é perdida, mas ao mesmo tempo é imortal, o nome de poesia, ou de pintura, cinema, música, filosofia....
   O espectador/apreciador moderno ao ver o simples irá pensar: "mas é só isso?" O artista irá dizer: " Quanta beleza há nessa pureza!"
   Conheci o simples. Conheci o simples num quintal, numa chuva ou no sorriso. Chuva que era apenas chuva. Sorriso que significava apenas um sorriso. Me apaixonei por essa beleza para sempre. E tenho a absoluta certeza de que ela vive. Que aquela chuva continua a chover e o sorriso ainda sorri. Essa é a religião da arte. A fé na beleza. A certeza inquebrantável no simples.
   Mas sou tão complicado....
   PS: O tal professor gosta de dizer:
   Percebem o que é o moderno? Transformar o simples no complicado e vender isso como simplificação.
   Todo um aparato para se fazer algo tão antigo como fofocar, conversar ou brincar.
   Cercados por uma tecnologia complexa para fazer, de modo complicado, aquilo que 5000 anos atrás era feito  da mais simples das formas.
   O que mudou?