QUANDO UMA OBRA DE ARTE MARCA SUA VIDA VOCE LEMBRA COM DETALHES DA PRMEIRA VEZ... A PRIMEIRA VEZ COM VIVA!

   Quando uma obra de arte marca sua vida, ela não se fixa em sua vida apenas por ser única. É o momento em que voce a encontra, assim como ocorre com o amor, que dá à obra sua "aura" semi-religiosa. Falo semi-religiosa porque mesmo um ateu militante ( ateu militante, contradição em termos ), tem uma experiência religiosa ao topar com a obra que definirá sua vida. É um momento em que não só ela, como o lugar e o dia em que foi avistada, dão ao apreciador um sentido de permanência, de motivação e de verdade. Como se naquele lugar e naquele momento a vida estivesse a descoberto, exposta em toda sua magnífica luz.
 Desse modo, tão importante quanto ter visto "OITO E MEIO" por exemplo, é a sala onde o assisti. A manhã de domingo, o tipo de luz que vinha pela janela, o pijama que eu usava. Se voce quiser saber o quanto aquela obra foi importante para voce faça a medição de quantas coisas voce recorda do dia em que a conheceu. Na primeira vez em que escutei LET IT BLEED eu estava com calor, sem camisa. Era hora do almoço, eu ia matar aula e meu irmão o escutou comigo.
 Do disco VIVA! do Roxy Music, tudo está vivo na minha lembrança. Tão vivo que até o cheiro da capa recém aberta me volta ao nariz quando rememoro esse momento. Era 1977, era abril, fazia sol e calor. Portanto daqui pra frente meu texto se tornará impressionista e se voce achar que o que aqui escrevo só interessa a mim mesmo.... bem, nosso mundo será brevemente um mundo ONDE TODOS SERÃO escritores e raros saberão ser leitores. Ele já é mundo em que bandas são mais numerosas que discos.
 Como todo quarto dos anos 70, o meu tinha cada centímetro das paredes coberto por uma foto recortada de alguma revista. Mulheres de bikinis, um cachorro salsicha, barcos, Cauli e Bocão pegando ondas, Zico, ilhas e bandas de rock: Led Zeppelin, Bad Company, Queen, Rolling Stones, Rod Stewart, Who, Zappa e uma do Ted Nugent. Naquela tarde de sol eu arranquei foto por foto  e comecei a pintar as paredes. Melancolia, eu cantarolava Chance Meeting, canção que havia recèm conhecido em VIVA! Não sabia que para o resto de minha vida aquela seria a música da minha melancolia.
 A primeira audição.
 Eram três da tarde e a casa estava vazia, toda pra mim. Uma lata de Lanjal misturada com água. Um vinyl bonito, o selo com o colorido VIVA! escrito com brilhantes e a capa de papelão: uma morena bonita cantando com Mr. Ferry.
 A multidão grita e faz coro, entra o som. Rico, cheio, oriental: OUT OF THE BLUE, com óboe, sinuosidades sexy, e a voz. Bryan cantava mais forte na época, cantava alto, viril, e tinha forte acento de ironia. A música evolui, a bateria de Paul Thompson comanda, um solo de Phil Manzanera e o encerramento extasiante. O povo delira e entra PYJAMARAMA. A new-wave nasce aqui. Ferry era então o rei de Londres. Pop classudo, belo sax de Andy MacKay. Eu estou estranhamente hipnotizado, aquilo era diferente, não parecia rock, era outra coisa. THE BOGUS MAN me aterroriza. Bateria marcial, baixo swingado e milhões de efeitos elétricos. A voz de Ferry é maldita e noturna, o synth de Eddie Jobson flutua, me enamoro do timbre da música, começo a entender sem saber das teorias de Eno: timbre é tudo.
 CHANCE MEETING em versão pop. Vozes da platéia ao fundo. Triste como uma despedida. E vem a alegria de BOTH ENDS BURNING. Muito melhor que a versão de estúdio, muito louca, solta, febril, emocional. Os vocais das Sirens são errados, desafinados, maravilhosos. Viro o vinyl. A platéia grita em coro: ROXYROXYROXY, costume mantido até hoje. IF THERE IS SOMETHING. Seria para sempre. São 3 movimentos, quase uma sinfonia glitter. Quanta beleza cabe numa faixa de vinyl negro que brilha como petróleo? IN EVERY DREAM HOME A HEARTACHE. Maldição, soturna, dark, vampirismo. Voodoo. DO THE STRAND. Final à la Roxy: festa. Caleidoscópica festa. Vai de tango a rumba, de rock a soul e valsa com fandango.
  Mas antes:
  Sentado num tronco de árvore que caíra a tempos em meu campo. Umidade, era a primeira tarde fria do ano. No JT vinha a crítica do lançamento do novo disco do ROXY: VIVA! Escrito pelo insuperável Ezequiel Neves. Ele botava o disco nas alturas. Chamava ENO de maluquete e dava a Ferry a alcunha de Frank Sinister. Eu já havia comprado outro disco do ROXY, Siren. Gostara, mas não muito. Na tarde seguinte, ainda muito cinza, iria comprar o tal de VIVA! O sol viria forte no dia em que o escutei... 
  É 2012.