THE RED SHOES, FILME DE MICHAEL POWELL ( O FAVORITO DE SCORSESE )

   Interessante perceber que escolho filmes, às vezes, como em cardápio. Tipo: "Hummm...vou começar o ano com..... ah! The Red Shoes!!!!"
   É a terceira vez que o assisto. Na primeira assistida, achei que era o filme mais gay já feito ( puro resquício de minha educação conservadora. Cresci numa casa onde até mesmo ler poesia era coisa de gay ), de qualquer modo, nessa primeira vez me decepcionei. Achei-o pedante, excessivamente snob, e pior: mofado. Gostei apenas da fotografia de Jack Cardiff.
  Na segunda vez descobri o filme. Entrei dentro do filme. Foi como encontrar a senha que me deu acesso a seu mundo. Senti o filme como uma viagem de LSD. Um delirio de cor, som e rostos esquisitos. Sim, é merecedor de sua imensa fama.
  Antes de dizer como foi minha experiência atual, direi que THE RED SHOES é considerado um dos, se não o maior, filme feito na Inglaterra. Ganhou Oscar de fotografia, num tempo em que um filme inglês ser premiado era raro. Tornou-se uma obsessão para Coppolla e Martin Scorsese. Martin pagou sua restauração em 1980, e mais que isso, organizou uma mostra de toda a obra de Powell no Museu de Arte Moderna de NY. Após vinte anos de ostracismo, Powell era justamente reabilitado. ( Seu ocaso se deveu ao filme maldito que fez em 1960, PEEPING TOM ). Mais que isso, o velho senhor de 75 anos, tornou-se um tipo de consultor da produtora de Scorsese e Copolla, ( dentre outras coisas, foi Powell que aconselhou Martin a fazer The Goodfellas ).  E ainda se casou com a montadora, a melhor dos EUA, Thelma Schoonmaker. Filmes de Copolla, como Dracula ou Rumble Fish, são filhos óbvios de Powell. Mas e Scorsese, o que ele vê em Powell? Há algo em comum entre os dois?
   Pela primeira vez eu noto similaridades entre dois gênios tão diferentes. THE RED SHOES tem movimentos de câmera velozes, cortes insuspeitos, closes assustadores. É uma técnica moderna, ousada, Scorseseana. Mas o principal é que, como nos principais filmes de Martin, o tema do filme é a obsessão. A terrível obsessão de um diretor de ballet por sua obra. Esse diretor tenta fazer da vida uma coisa ideal, fazer da vida pura arte. Não pode conseguir. O sexo e a morte o derrotam. THE RED SHOES é tão terrívelmente cruel quanto qualquer filme sobre a máfia. E é tão doentio quanto Taxi Driver.
   Então o assisto na madrugada deste dia 1. Ligo o aparelho as 6 horas. Após dormir apenas três horas. Começa....
   Estudantes invadem um teatro em Londres onde vai haver um ballet......e o resto é lenda....
   Há um diretor tirânico, que cobra de todos dedicação absoluta. Há cor. Verdes e azuis profundos, imensos, amarelos sombrios. E cortes. Uma cena aberta mostra a orquestra. Corta para um rosto mau. Corta para o palco. Corta para o camarim onde bailarinas se apressam. Corta e corta e corta. Mas não é o corte à video clipe. É o corte que narra, que expõe, que nada esconde.
   Uma nova bailarina. Torna-se uma estrela. Se apaixona pelo jovem compositor. É seu fim. A vida real, feita de sexo e de morte penetra o mundo do balet. É o fim. Mas antes....
   A apresentação após os ensaios.  O que dizer? O filme não parece deste mundo. As pessoas parecem extra-terrestres, são como seres ausentes, vampiros, parecem feitas de outro material que sangue e ossos. Os rostos, cheios de maquiagem, são irreais. E os cenários são como sonhos de droga potente. Explodem de beleza, explodem de insuspeito desejo, são sonhos, sonhos que não se esquece. Música, dança e cor em profusão, em desatino.
   O filme se parece com o tipo de filme que seria feito em 1810, pelos românticos alemães, se em 1810 houvesse cinema. É febril, perturbador, desagradável, inebriante, de uma tolice sublime, anti-racional, mágico, estúpido e de uma coragem cafona estupenda. Arte superior ou carnaval grotesco, que importa? Ele se grava em sua mente e se torna seu espirito. Obra de feiticeiro.
   Enquanto o assisto penso na loucura que deve ser vê-lo em tela grande. Ver aqueles rostos, as luzes, os saltos, em vários metros de tela. Sair do cinema após essa experiência e ver a rua...deve ser enlouquecedor!
   Mas por favor, não espere deste filme "emoção". Ele não fará seu coração disparar, não te dará vontade de chorar e nem te despertará pensamentos filosóficos. Ele te dará admiração, pura e superior admiração. Voce se admirará com sua beleza de delirio, com sua música potente, com a dança exultante. Voce o admirará, o respeitará, irá colocá-lo em pedestal. O filme passará a ser uma parte de sua alma. Não te dará emoções, te dará sentimentos.
   Sinto que vi, talvez, o melhor dos filmes, talvez.
   Moira Shearer fez a bailarina. Quando o filme foi lançado ( 1948 ), a sensação foi tanta, que várias meninas se tornaram bailarinas ao ver o filme. A geração de balet que hoje tem entre 50 e 70 anos deve muito a este filme. Moira está apaixonante. Um rosto de vulnerabilidade, um tipo de pequena princesa virgem. Olhos cor de avelã, expressão de inocência. Todo o elenco brilha, e é estranho, a sensação é de que eles não são atores, eles são aquilo que vemos, parte de uma alucinação.
   Boa parte do filme se passa em Monte Carlo e é fascinante ver a cidade no pós-guerra. Jardins a perder de vista, veleiros no porto, pouca gente nas ruas. Essas cenas, assim como um passeio de carruagem pela orla, aumentam ainda mais o aspecto onírico do filme.
   Quem detesta ballet deveria ver o filme. Ele fará com que voce tenha outra impressão da arte. Irá te conquistar. Porque não é apenas ballet....é cinema, é drama, e é acima de tudo o mais alucinante dos filmes. Michael Powell fez aqui ( com Emeric Pressburger ), um sonho de ilusão.
   Um filme parecido com este nunca mais será feito. Assitir é experiência para uma vida. E nesta terceira vez, passo a compreender a obsessão de Scorsese. Para quem ama o cinema, ele é jóia de destaque, tesouro de luz, momento de maioridade. Lindo, excessivamente lindo.... talvez não o mereçamos mais.