UM LIVRO ABERTO- JOHN HUSTON ( NO TEMPO EM QUE DIRETORES DE CINEMA ERAM HOMENS )

   No final da vida, que é quando este livro foi lançado, John Huston morou numa praia escondida, no México. E é lá que este delicioso livro começa. Huston faz parte de duas tradições. A primeira, daquele típico artista americano que detesta parecer "artista". São homens que apesar de lerem poesia, filosofia e amarem teatro, temperam isso com fartas doses de esportes, lutas, mulheres e silêncio. Não frequentam o mundinho intelectual e prezam uma feroz individualidade. A outra tradição de que Huston faz parte é a dos pioneiros do cinema ( pioneiro que ele não é. Sua carreira começa em 1941, longe do cinema silencioso ). Pioneiros que tinham o cinema como uma profissão acidental. Não cinéfilos, com currículos de atletas, gigolôs ou marujos. Gente como Hawks, Walsh e Fleming.
   Huston carrega também um feito que dificilmente será igualado. Dirigiu o filme que deu o Oscar a seu pai e quase quarenta anos depois, dirigiu um filme que deu um Oscar a sua filha.
   John Huston vem de uma familia aventureira. Gente que ganhou fábricas em mesas de poker e perdeu fortunas em casamentos ruins. Walter Huston, pai de John, foi uma lenda do teatro. É dele a versão que popularizou para sempre September Song de Kurt Weill. Walter fazia de tudo: Shakespeare e burlesco. Depois ficou famoso no cinema. John veio ao mundo nesse planeta de shows, trens e hotéis. Desejou ser pintor, mas não gostava de passar fome e se fez lutador profissional de boxe. Depois, cansado de quebrar o nariz, começou a escrever contos, foi convidado a ajudar a terminar roteiros e acabou como roteirista famoso. Veio então a estréia como diretor em "O FALCÃO MALTÊS" e o sucesso.
   Os melhores filmes de Huston têm um tema em comum: a luta de gente derrotada em conseguir ganhar alguma coisa na vida. E a derrota final dessas pessoas. Mas são homens que jamais se lamentam, têm a vida que escolheram. Os filmes de Huston são profundamente existenciais, não por acaso Sartre gostava deles.
   Cinema era coisa secundária para John. Ele preferia viver. Me assusta um pouco a avidez com que ele matava animais. Caçadas na África e na India. Mas depois ele diz que jamais voltaria a matar um animal, cometer tal pecado. Ao mesmo tempo ele ama os bichos e chegou a destruir um de seus casamentos por isso. Optou por um chimpanzé e largou uma esposa, ( essa história é hilária ). De qualquer modo, foram cinco casamentos e as mulheres são beeeem secundárias no livro.
   Os amigos são mais importantes. O melhor foi um jockey. Mas Huston tinha entre seus preferidos escritores, nobres europeus, caçadores, boxeurs, tenistas e Humphrey Bogart.
   Ele fala de como foram feitos seus filmes. Nenhum é mais divertido que THE AFRICAN QUEEN. Feito em locações precárias, numa Africa ainda sem contato com o "mundo civilizado". Bogart odiando aquilo tudo, e Kate Hepburn amando a aventura. Formigas vorazes, nuvens de mosquitos, desinteria, água imunda, ruídos na noite, elefantes e leões, macacos vivendo nos sets. Tempestades. Há um filme de Clint ( meu favorito de Eastwood ), que narra esses bastidores. O papel de Huston é feito por Clint...
   O pior foram os sets de FREUD. Montgomery Clift já corroído pela bebida, o roteiro impossível de Sartre e atores que se pensavam gênios. Um inferno! Os maiores elogios de John vão para atores não-estrelas, gente como Paul Newman, Gregory Peck, Clark Gable ou Sean Connery. Gente que sabia viver e que via o cinema como profissão, se arriscavam, tentavam mudar.
   Há longos capítulos sobre boxe, sobre a India e sobre a Irlanda. Todos são ótimos, mas o melhor fala sobre a arte da caça a raposa. Acredite, é muito bom. Huston nunca tenta ser simpático e está longe da era do politicamente correto. Ele é o que é, e é isso que seus filmes ensinam.
   Casou-se em impulso de uma noite, casoú-se com amiga, casou-se muito jovem e se casou com artista. E também com uma predadora. Errou em todos. Não chora por isso. Mulheres eram importantes, mas estavam longe de ser "tudo".  Amava mais às viagens, as bebedeiras, as apostas ( Huston era desse tipo que joga cara ou coroa pra ver se aceita um trabalho ou recusa ), os bichos, os filmes. Nessa ordem de preferência.
   Ele gostava de Bergman e Fellini, admirava essa coisa de se escrever sobre si-mesmo e fazer uma série de filmes "com estilo definido". Mas preferia fazer um filme diferente do outro, sobre temas exteriores a sua vida, pegar um livro e filmá-lo. Lia muito. Quatro por semana.
   Fez grandes filmes. Obras que dão um imenso prazer. O TESOURO DE SIERRA MADRE, O SEGREDO DAS JÓIAS, A GLÓRIA DE UM COVARDE, O DIABO RIU POR ÚLTIMO, O CÉU POR TESTEMUNHA, KEY LARGO, OS MORTOS...
   Nunca haverá outro diretor assim. Todos são/serão ratos de cineclube. Fãs que citam o que viram num filme e nunca aquilo que viveram ao vivo.
   Apesar de John Huston ter sido um ateu convicto, digo: Deus salve seus filmes! Um brinde a um grande Homem!
   PS: Consegui ver um de seus documentários sobre a segunda-guerra ( ele esteve lá ), é uma obra-prima. HAVERÁ LUZ foi censurado nos EUA por trinta anos. Mostra a vida dos soldados traumatizados em centros de reabilitação. O trabalho dos psiquiatras com esses farrapos humanos. É um filme de uma nobreza infinita. É puro Huston.