OS MORTOS- JAMES JOYCE

   No momento em que Joyce escreveu Os Mortos, sua alma se encontrava perturbada. Ele se irritava ao constatar que mesmo vivendo na Itália, a Irlanda permanecia viva dentro de sua mente. O conto é a constatação de que tudo aquilo que cremos morto continua influenciando a nossa vida. Mais que isso, por ser morta, e portanto fora do tempo, essas coisas têm o poder da imutabilidade. Portanto, como deixa claro esse conto, quem pode vencer um amor que morreu de tanto amar?
   No Natal, em Dublin, irmãs solteiras convidam amigos e parentes para a ceia. Música, poesia, discursos e bebidas. Ao fim da noite, Gabriel, o personagem central, descobre que sua esposa viveu uma paixão na juventude. Um jovem apaixonado por ela, de certa forma, morreu de amor por sua mulher. Caindo em si, ele constata que ninguém conhece verdadeiramente alguém, e pior, que os mortos continuam ditando, indefinidamente, os acontecimentos da vida dos vivos. Joyce, jovem quando escreveu este conto, demonstra soberba compreensão da vida e da mortalidade. Gabriel olha a esposa, olha a neve que cai ao fim da narração, e percebe o tempo.
  Não há um final nesse conto, não existe um começo. Exemplo central do tipo de história possível no mundo moderno, Joyce sabe que o mundo ordenado de Austen ou Dickens se fora. Não podemos crer mais em vidas que transcorrem em linha reta. O conto é um fragmento, uma noite numa vida, um floco de neve. Não saberemos de onde os personagens surgiram, e jamais iremos saber o que deles será feito. A narrativa é um pedaço de um pedaço, e do pedaço se tenta tirar um sentido, e esse sentido, Joyce sabia, é a busca do sentido. O único personagem definido e completo é o rapaz morto.
  Na biografia de Richard Ellman ficamos sabendo que a esposa de Joyce também teve um jovem amante que morreu.  Joyce escrevendo tenta dar rumo a uma história que o perturbou? Como saber? Uma tristeza "fofa" ronda através de todo o texto. As pessoas na festa não se percebem, não se tocam, estão em mundos paralelos, à parte. Mas é uma melancolia tola, ausente de propósito, sem força. A impossibilidade do trágico também está aqui representada. Pois a tragédia se dá em pessoas que aceitam a dor e sabem ser ela certa e fatal. Nosso tempo não mais a conhece. Negamos.
  OS MORTOS, com suas vozes empoladas, seus discursos vazios e a cena aterradora na escadaria, é, talvez, o melhor conto que já tive a glória de ler. James Joyce fala de emoções inescapáveis e da condição de se viver sem se poder saber nada. Gabriel tem seu mundo roído diante de nossos espiritos, ele desaba em meio minuto. O modo como Joyce faz isso, simples, claro e sorrateiro, deixa marca na carne de quem o lê.
  Ler é morrer um pouco, e absurdamente, é também viver mais.